Maconha: planta medicinal ou droga ilícita?
A língua portuguesa, em sua vasta riqueza, nos presenteia com um universo de palavras dotadas de significados precisos e capazes de transmitir com clareza as nuances de nossas ideias. No entanto, a repetição frequente de certos termos pode, com o tempo, gerar novas interpretações e até mesmo igualar o sentido de expressões distintas.
Ao buscarmos a orientação nos dicionários e regulamentos, encontramos o registro oficial dos significados e usos das palavras do ponto de vista semântico e jurídico, respectivamente. É nesse contexto que podemos analisar as diferenças entre as expressões “droga” e “planta”, que carregam em si distinções importantes.
Droga, etimologicamente, vem do francês drogue e significa ingrediente de tintura ou de substância química farmacêutica. De acordo com o parágrafo único do artigo 1º da Lei nº 11.343/2006 (Lei Antidrogas), “consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”.
A mesma lei, em seu artigo 66, estabelece que, “para fins do disposto no parágrafo único do artigo 1º […], até que seja atualizada a terminologia da lista mencionada no preceito, denominam-se drogas substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1998”. Portanto, o significado do que é “droga” advém da referida portaria, que a define especificamente como sendo “substância ou matéria-prima que tenha finalidade medicamentosa ou sanitária”.
Planta, etimologicamente, deriva do latim plantae e significa forma comum dos organismos do reino vegetal, de maioria autotrófica, fixa a um substrato e caracterizada pela presença de clorofila e de celulose em suas células. A planta usada para a preparação de remédios é classificada como medicinal, definida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por meio da Resolução RDC nº 654/2022, como sendo “espécie vegetal, cultivada ou não, utilizada com propósitos terapêuticos”.
Ao analisarmos as definições oficiais, fica clara a distinção fundamental entre droga e planta. Enquanto droga tem uma acepção química ao se referir a uma substância, planta tem um sentido biológico ao fazer referência a forma dos seres vivos do reino vegetal. Para ilustrar, da mesma forma que a famosa Pirâmide de Kelsen representa graficamente o sistema jurídico de normas por meio de segmentos, a organização dos seres vivos também envolve níveis hierárquicos de complexidade, partindo dos átomos e moléculas (substâncias) na base até o organismo no topo.
Em 1998, a planta conhecida como cannabis sativa, ou maconha, foi incluída na lista E do regulamento técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. Esta lista é composta por plantas de uso proscrito que podem produzir substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas, ou seja, substâncias que podem causar dependência física ou psíquica. Conforme disposição do artigo 61 da Portaria SVS/MS nº 344/1998, “as plantas constantes da lista E não poderão ser objeto de prescrição e manipulação de medicamentos alopáticos e homeopáticos”.
Em acréscimo, o artigo 2º da Lei 11.343/2006 estabelece que “ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar […]”. O artigo supracitado prevê tanto a proibição de certas drogas quanto a proibição do plantio, cultivo ou colheita de vegetais que possam originar drogas até então classificadas como proibidas.
As substâncias de uso proscrito no Brasil estão relacionadas na lista F da Portaria SVS/MS nº 344/1998, dentre elas o tetraidrocanabinol (THC), um dos principais componentes da maconha, responsável por seus efeitos alucinógenos. No entanto, em 2016, a Anvisa editou a Resolução RDC nº 66 para excepcionar a permissão para a prescrição de medicamentos registrados que contenham em sua composição as plantas do gênero cannabis sp., suas partes ou substâncias obtidas a partir delas, incluindo o THC.
Um ano depois, em 2017, a Resolução RDC nº 156 reconheceu oficialmente a maconha como planta medicinal ao incluir sua nomenclatura científica na lista das denominações comuns brasileiras (DCB), que relaciona os nomes oficiais dos fármacos, plantas medicinais e outras substâncias de uso aprovado no Brasil. Neste mesmo ano, foi aprovado o registro do primeiro medicamento à base de cannabis, com nome comercial de Mevatyl, contendo THC na concentração de 27 mg/mL e canabidiol (CBD), 25 mg/mL, substâncias obtidas a partir da matéria-prima vegetal, com estruturas químicas definidas e atividade farmacológica.
Cannabis para fins medicinais - Em 2019, a Anvisa publicou a Resolução RDC nº 357, que dispõe sobre os procedimentos e requisitos sanitários para a fabricação, importação, comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização de produtos de cannabis para fins medicinais. A resolução estabelece em seu artigo 4º que “os produtos de cannabis contendo como ativos exclusivamente derivados vegetais ou fitofármacos da Cannabis sativa, devem possuir predominantemente, canabidiol (CBD) e não mais que 0,2% de tetrahidrocanabinol (THC)”.
Já o artigo 5° estabelece que “os produtos de cannabis podem ser prescritos quando estiverem esgotadas outras opções terapêuticas disponíveis no mercado brasileiro”. Dados publicados em 2022, no portal da Anvisa, demonstram que há atualmente 23 produtos de cannabis aprovados, sendo 9 à base de extratos de cannabis sativa e 14 de canabidiol.
Resta claro, portanto, que a maconha possui status oficial de planta medicinal e não de droga ilícita de uso proscrito; seu uso para fins medicinais deve atender as disposições legais e regulamentares, uma vez que medicamentos e produtos destinados à prevenção e tratamento de doenças devem seguir padrões rigorosos de segurança, qualidade e eficácia; há vários medicamentos e produtos de cannabis registrados na Anvisa, legalmente prescritos e comercializados no mercado nacional, indicando que, assim como a maconha, os seus derivados também não possuem status de substâncias proscritas. E não há proibição regulamentar expressa para o uso não medicinal da maconha no Brasil.
Tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição — PEC nº 45, de 2023, que altera o artigo 5º da Constituição, para prever como mandado de criminalização a posse e o porte de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, já aprovada em dois turnos no Senado e encaminhada para a Câmara dos Deputados, pendente de votação. A proposta, pelo que se lê, não criminaliza plantas, mais especificamente a maconha ou seus derivados naturais.
Em contrapartida, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) está julgando o Recurso Extraordinário (RE) 635659 que discute se o porte de drogas para consumo próprio pode ou não ser considerado crime. A discussão é sobre a constitucionalidade do artigo 28 da Lei Antidrogas, que prevê sanções a quem adquire, guarda, deposita, transporta ou porta, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. A norma também sujeita às mesmas penas quem semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de produtos ou substâncias capazes de causar dependência física ou psíquica.
No que pesem os fundamentados argumentos diversos, é evidente que há distinção entre os termos droga e planta e que considerá-los como sinônimos constitui um recurso artificial de controle social e fomento à guerra as drogas.
Não há como classificar atualmente a maconha como “droga sem autorização”, uma vez que as mudanças regulatórias promovidas pela Anvisa ao longo do período pós 1998 evidenciam o reposicionamento do controle sanitário, com alteração do seu status de planta de uso proscrito para planta medicinal.
Também não há como enquadrar o uso não medicinal da maconha e seus derivados como “em desacordo com determinação legal ou regulamentar” devido à ausência de norma que proíba explicitamente o uso não medicinal da planta ou que defina os parâmetros para tal uso.
(*) Danillo Macêdo Gomes é farmacêutico pela Universidade Federal da Paraíba e mestre em Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina.
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