Mão na roda
Uma das obras encantadoras de Candido Portinari é Dança de Roda, produzida em 1955, há exatas sete décadas. Representa 11 mulheres de mãos dadas, formando uma roda. No primeiro plano estão cinco mulheres de costas, com vestidos coloridos esvoaçantes. As demais estão, de frente, no segundo plano, sendo cinco apenas esboçadas. É particularmente interessante a décima-primeira mulher, que faz a conexão entre os dois quintetos: ao usar vestes coloridas, identifica-se com o primeiro grupo, e, ao estar de frente, pertence ao segundo. Ao incorporar essa ambivalência, o artista antecipa a ideia de conjunto nebuloso (fuzzy set), que rompe com o modelo clássico da lógica formal, a qual só admite a bivalência (verdadeiro ou falso)
Merece atenção a aparentemente enigmática inscrição no canto inferior esquerdo da tela: “Paz O.N.U. VI-55”. É que, mais além de representar uma expressão da cultura popular brasileira, mesclando raízes europeias e africanas, a Dança de Roda é um dos 180 estudos que Portinari desenvolveu ao longo de quatro anos (1952-1956) para produzir a monumental obra Guerra e Paz. Os dois gigantescos painéis de 14m x 10m cada, um representando a Guerra e outro a Paz, foram oferecidos pelo Governo do Brasil à Organização das Nações Unidas como um presente para o novo edifício-sede de sua Assembleia Geral, cuja comissão internacional de design participara ativamente Oscar Niemeyer. Durante a construção, havia sido solicitado aos países membros que cada um doasse uma obra de arte para a nova sede. Na fala do então secretário-geral, quando da instalação de Guerra e Paz em 1957, tratava-se “da mais importante obra monumental doada à ONU”.
A produção e a exposição dessa obra foram prenhes de situações imponderáveis. Enquanto fazia o estudo preparatório para os dois painéis, os médicos aconselharam Portinari a parar de pintar, devido à intoxicação causada pelos pigmentos de chumbo presentes nas tintas. O pintor rejeitou o conselho médico, decidindo completar sua obra-prima, mesmo à custa da saúde. Sua morte prematura decorreu de saturnismo, doença grave ocasionada pelo acúmulo de chumbo no organismo, com efeitos severos em diversas partes do organismo, incluindo cérebro, nervos, rins, fígado e sangue. Merece registro o fato de esse mal ter sido epidemiologicamente mitigado décadas mais tarde, com o banimento dos pigmentos de chumbo nas tintas e do chumbo tetraetila como aditivo na gasolina automotiva.
Embora o local da sede das Nações Unidas em Nova York tenha status de extraterritorialidade, ele permanece sob jurisdição da legislação estadunidense. O fato marcante é que Portinari não pôde participar da cerimônia de entrega e instalação dos painéis de sua lavra no saguão de entrada do novo prédio da ONU. Os Estados Unidos lhe negaram o imprescindível visto de entrada, por se recusar a declarar que não era comunista. Ele tinha sido membro do Partido Comunista no Brasil, cabendo observar que o registro desse partido havia sido cassado dez anos antes.
A grande reforma no edifício-sede da ONU acarretou o retorno dos painéis ao Brasil em 2010, para seu restauro. Em 2015, por ocasião do 70º aniversário das Nações Unidas, a obra voltou a Nova York e teve a sua segunda inauguração. Contudo, o atual posicionamento dos painéis traz limitações: eles ficam em uma área exclusiva, por onde passam apenas diplomatas apressados. Isso impede que sejam apreciados nas visitas organizadas para turistas, que afluem em grande quantidade, o que reduz o seu efeito educativo. O que é uma pena, pois o próprio boletim da ONU alusivo à reinauguração tem o título “Guerra e Paz mais atuais do que nunca”.
As rodas comparecem na crônica das mulheres de outras formas, além da dança. Ao acionarem determinadas rodas, as mulheres também moveram a sua história distintiva. Um caso pungente é o da Roda de Expostos. Trata-se de um mecanismo giratório de madeira embutido em muros de instituições religiosas ou hospitais, onde crianças abandonadas eram colocadas anonimamente para serem acolhidas e cuidadas. O dispositivo permitia que a pessoa que estava abandonando a criança, tipicamente a sua mãe, não fosse identificada, uma vez que ela se retirava rapidamente após girar a roda, carregando apenas a expectativa de que o bebê fosse rapidamente acolhido e recebesse a necessária assistência inicial e suporte ao seu desenvolvimento.
As Rodas de Expostos tiveram origem na Europa, datando os primeiros registros do final do século 12. Seu objetivo inicial era o de reduzir o infanticídio e oferecer uma alternativa para mães que não podiam cuidar de suas crias, possibilitando-lhes deixar os seus filhos em segredo em vez de matá-los. Essa era uma prática disseminada, conforme evidenciam os numerosos bebês afogados encontrados no Rio Tibre à época. A instalação desses dispositivos em lares para enjeitados foi estimulada por um decreto papal.
Essa inovação se espalhou gradativamente por diversos países europeus, principalmente os de tradição católica. Sua crescente presença em Portugal a partir do século 15 se deveu ao surgimento das irmandades de misericórdia. Como era de esperar, as Rodas de Expostos também emergiram no Brasil, sendo as primeiras encontradas no século 18 nas Santas Casas de Misericórdia das até então capitais da colônia (Salvador e Rio de Janeiro).
Documentos atestam a existência da roda da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo desde 1825, há exatos 200 anos. Eis a descrição feita pelo Museu Santa Casa de São Paulo, onde a antiga peça está exposta: “A Roda dos Expostos era uma caixa cilíndrica de madeira que rodava dentro de um nicho do muro junto ao portão que dava para a rua [Dona] Veridiana, onde está localizado o Hospital Central. As mães que, por qualquer motivo, não podiam cuidar dos filhos recém-nascidos, abriam a portinhola da caixa, deixavam a criança no seu interior e viravam o dispositivo para o outro lado do muro, tocando uma campainha que soava no dormitório das irmãs. As crianças eram retiradas da caixa, alimentadas, cuidadas e, mais tarde, eram acolhidas no Educandário Sampaio Viana, onde eram educadas até atingirem idade suficiente para sair e se manter. A roda foi extinta em 1949”.
Embora a intenção precípua fosse evitar um mal maior, a instituição das Rodas de Expostos teve vários aspectos sombrios. Destaca-se a dramática mortalidade dos enjeitados. Segundo relato resgatado pela saudosa professora da USP Miriam Lifschitz Moreira Leite, a escritora e desenhista inglesa Marta Graham, que fora governanta dos filhos de D. Pedro e da princesa D. Leopoldina, indica ter visto o registro de que ao longo de 13 anos entraram pela roda na Santa Casa do Rio de Janeiro perto de 12 mil bebês, tendo “vingado” apenas mil, “não sabendo a Misericórdia verdadeiramente onde eles se achavam”.
A fascinante e ao mesmo tempo angustiante tese de Elizangela Nivardo Dias sobre os bilhetes deixados nas Rodas de Expostos (FFLCH-USP, 2017) permite auscultar os sentimentos das mães prestes a girar a roda que as separaria definitivamente dos seus filhos recém-nascidos. São exemplares desse momento patético os textos seguintes, transcritos na tese:
De escrito encontrado em Lisboa, mantida a redação original: “Este infeliz innocente filho de um Amor mutuo, e Sincero; nasceo honte 11 de Maio de 1841 ás 10 horas da manhâa, e Dia de Santo Anastacio. Seus Progenetores, rogão que ate o dia em que esperam hir recebelo, seja carinhozamente tractado, pelo que serão gratos, e igualmente pedem seja Baptizado Jozé, o que tudo esperam pela Caridade da Santa Caza, e sua Philantropia”.
De fragmento de 1922, guardado no Museu Santa Casa de São Paulo, intitulado Recebam-me: “Chamo-me Antonio. Sou um orphãozinho de pae, porque ele abandonou minha mamãe. Ella é muito boa e me quer muito bem, mas não pode tratar de mim. Estou magrinho assim porque ela não tem leite, é muito pobre e precisa trabalhar. Porisso ela me poz aqui para a irmã Ursula tratar de mim. Não me entreguem a ninguém porque minha mamãe”. Não sabemos como termina a súplica. Talvez, como a de Lisboa, contenha a esperança de algum dia “hir recebelo”…
Há também dois séculos, ao tempo que se estabelecia a Roda de Expostos em São Paulo, emergiu uma inovação baseada na movimentação de rodas que viria, décadas depois, a contribuir sobremaneira para transformar a vida das mulheres e a sua posição na sociedade. Como outras inovações, a origem do que veio a ser conhecido por bicicleta é sujeita a controvérsias, que levaram à criação de um foro específico – a Conferência Internacional de História do Ciclismo (ICHC, sigla do seu nome em inglês), que ocorre anualmente desde 1990.
Há um consenso de que o artefato pioneiro é a “draisine”, também conhecida como “máquina de correr” (Laufmaschine no original alemão) ou “cavalo de dândi”, inventada em 1817 por Karl Drais. Tratava-se de um veículo rudimentar, sem pedais, correntes ou freios, impulsionado pelo usuário empurrando o chão com os pés. O invento recebeu um privilégio similar à patente no ano seguinte e o seu autor foi agraciado com o título honorífico de “professor de Mecânica”, com direito a uma pensão.
Versões aprimoradas posteriores foram elogiadas pelo público, mas a inovação “não pegou”. Uma das razões foi o seu banimento em alguns países em decorrência do risco aos transeuntes nas calçadas, para onde o veículo havia migrado em razão da dificuldade de os ciclistas manterem o equilíbrio no leito carroçável cheio de sulcos causados pelas carruagens, carroças e outras viaturas da época. Merece apontamento a semelhança com os riscos aos transeuntes contemporâneos, ocasionados pela movimentação de hordas de bicicletas e motocicletas de entregadores nas esburacadas calçadas paulistanas.
Uma nota curiosa é a passagem de cinco anos de Karl Drais entre nós, trabalhando como agrimensor na fazenda do Barão von Langsdorff, um naturalista alemão e notável explorador do Brasil, que exercia a função de cônsul da Rússia no Rio de Janeiro. Drais aqui aportou em virtude de problemas políticos no seu país. Ele era adepto da revolução contra o regime conservador vigente, pelo que veio a abdicar do título nobiliárquico de Barão von Drais, adotando o nome de Cidadão Karl Drais.
Após o seu retorno à Alemanha, voltou a atuar como inventor serial. Um dos seus inventos, usado até os dias atuais, é um veículo ferroviário auxiliar leve, conduzido por pessoal de serviço, equipado para transportar tripulação e material necessário para a manutenção da infraestrutura ferroviária. Esse veículo é conhecido no meio ferroviário brasileiro pelo epônimo “dresina”. Com a derrota das revoluções de 1848, conhecidas como Primavera dos Povos, ele perdeu a pensão e sofreu outras punições, morrendo à míngua pouco tempo depois.
A draisine foi um marco importante na história da mobilidade e serviu como base para o desenvolvimento das bicicletas modernas. Inovações incrementais ao longo de décadas, como a adição de pedais e correntes, popularizaram esse artefato, levando o final do século 19 a ser conhecido como a “época de ouro das bicicletas”.
Todavia, a trajetória dessa inovação teve percalços de aceitação mesmo nos países que a desenvolveram, como a Inglaterra. Os seus detratores utilizavam recursos que iam de vaias aos ciclistas à sabotagem física das próprias bicicletas. Em outras partes do mundo os opositores apelavam a argumentos de cunho religioso: por exemplo, setores conservadores no Império Otomano apelidaram a bicicleta de “carruagem do diabo”. Ela danificaria os órgãos do aparelho reprodutor, incentivaria a permissividade sexual e levaria à destruição da família.
Um caso particularmente interessante foi a oposição ao uso de bicicletas por mulheres. As razões alegadas eram variadas, algumas de cunho moralista, como a visibilidade das suas roupas de baixo ao montarem e desmontarem as bicicletas da época. Conhecidas como penny farthing (nome dado por associação com as moedas inglesas penny e farthing, sendo uma bem maior do que a outra), tinham a roda dianteira de grande dimensão e a traseira pequena. O livro The Social Construction of Technological Systems reproduz a resposta a uma consulta sobre o uso da bicicleta por mulheres, feita em 1885: “O simples fato de andar de bicicleta não é pecaminoso em si, e se for o único meio de chegar à igreja em um domingo, pode ser desculpável”.
A adaptação mútua entre a tecnologia e as usuárias permitiu superar gradualmente alguns dos problemas de aceitação. A penny farthing foi substituída pela bicicleta com as duas rodas de mesmo tamanho, como a conhecemos hoje. Por sua vez, a moda feminina passou a incorporar o uso de calças pantalonas e outras vestes mais adequadas ao recato no uso desse meio de transporte.
Uma ilustração pitoresca da associação entre a bicicleta e o avanço dos direitos da mulher aconteceu numa instituição de ensino superior de nomeada, a Universidade de Cambridge. Fundada em 1209, ela passou a aceitar estudantes do sexo feminino em algumas unidades a partir de meados do século 19. Todavia, as mulheres eram impedidas de receber seus diplomas, mesmo que tivessem tirado notas superiores às dos homens nos exames. Pois muitos em Cambridge acreditavam que, se as mulheres recebessem diplomas, isso afetaria o ingresso dos homens diplomados no mercado de trabalho.
A luta pela igualdade plena continuou. Em 21 de maio de 1897, com base nos precedentes de universidades prestigiosas, como a de Oxford, a instituição levou a voto uma resolução que concederia o diploma às estudantes, ainda que com limitações, como a de não ter voz nos procedimentos da Universidade. A votação culminava anos de debates cada vez mais vitriólicos. A causa das mulheres perdeu a votação por larga margem.
Seguiram-se um dia e uma noite de comemorações pelos estudantes (do sexo masculino, obviamente). Vitrines de lojas foram quebradas e uma fogueira gigante foi acesa na Praça do Mercado, alimentada com qualquer madeira acessível. Os danos às propriedades públicas e privadas foram expressivos. As cenas extraordinárias foram capturadas por fotógrafos posicionados em telhados e outros lugares altos.
A foto mais icônica é a da multidão sob a efígie representativa da “nova mulher”, uma ciclista com ceroulas azuis e corpete rosa, suspensa de uma janela acima de uma livraria. Comemorando o resultado da votação, a efígie foi arrancada e decapitada pelos exultantes estudantes de graduação. Apenas em 1948, culminando oito décadas de lutas, as estudantes do sexo feminino da Universidade de Cambridge receberam os mesmos privilégios de seus colegas homens.
É razoável supor que, mesmo sem ter sido enunciada, uma razão para a oposição ao uso de bicicletas por mulheres era o temor da perda de controle pelos homens, eis que elas passavam a dispor de um veículo em que poderiam se deslocar desacompanhadas com facilidade. Isso dificultava a fixação da mulher em casa e a restrição ao contato não supervisionado entre mulheres e homens, valores de há muito prezados.
O resultado do encontro entre a mulher e a bicicleta é assim resumido, no limiar do século 20, por Susan B. Anthony, escritora e ativista estadunidense que exerceu um papel crucial na luta das mulheres pelo direito ao voto: “Deixe-me dizer o que penso sobre o ciclismo. Acho que ele fez mais para emancipar as mulheres do que qualquer outra coisa no mundo”.
(*) Guilherme Ary Plonski, professor sênior da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP e do Instituto de Estudos Avançados da USP
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