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Pelos interstícios do rosto

Marcelle Schimitt (*) | 17/03/2022 08:25

Lemos um rosto como quem lê um livro. Mas a história que lemos no rosto não está nele: está no entre, nas relações que com ele estabelecemos, nas suas conexões com o entorno. A história que lemos no rosto está também em nós, já que o interpretamos a partir das nossas próprias concepções de mundo. O rosto não acaba nem começa em si mesmo. Seja porque suas expressões e traços estão em constante mudança, pelos sentimentos e emoções, pelo tempo ou pela avalanche de novos aprimoramentos estéticos, seja porque quem lê esse rosto é sempre diverso e estabelece a sua própria leitura. E, por isso mesmo, ele é algo que a todo momento nos escapa – uma história em movimento cujo narrador não tem qualquer controle e está sempre alternando. O rosto é como um sonho que sempre foge às tentativas de uma explicação coesa.

Em 1986, na cidade de Ipiaú, região cacaueira da Bahia, nascia André Luiz, um bebê prematuro e com fissuras labiopalatinas, pejorativamente chamadas de lábio leporino, uma malformação facial congênita que ocorre durante a 4.ª e a 12.ª semana de gestação e que afeta 1 em cada 650 dos nascidos no Brasil, segundo o Ministério da Saúde. Diferentemente do que hoje é indicado, André Luiz somente teve acesso ao tratamento cirúrgico quando as fissuras haviam deixado sequelas que levariam vários anos e uma gama diversa de cuidados e esforços para serem reparadas. Sua primeira cirurgia, de fechamento do lábio, comumente realizada antes dos 6 meses de vida, só ocorreu aos 5 anos de idade, e o procedimento no palato (céu da boca), cuja indicação é de que seja feito logo após o primeiro ano de vida, apenas na adolescência. Ao todo, André Luiz realizou sete cirurgias: três nos lábios, duas no nariz, uma no palato mole e uma no maxilar.

André é um dos interlocutores da pesquisa que estou realizando no meu doutorado em Antropologia Social, na qual reflito sobre a centralidade da face a partir das experiências de pessoas que nasceram ou que têm filhos e filhas com fissura labiopalatina.  Ao conversar com mães e cuidadoras, muitas relataram problemas em encontrar informações qualificadas a respeito dos tratamentos disponíveis, como amamentar e quais os cuidados básicos deveriam ter com as crianças recém-nascidas.

Apesar da complexidade do processo de reabilitação, ainda hoje não há Lei Federal reconhecendo as fendas labiopalatinas como deficiência e, em decorrência disso, o acesso de algumas famílias à assistência médica e financeira é bastante precário, especialmente entre aquelas que vivem distante dos grandes centros urbanos.

Talvez o aspecto visual da fissura seja o que mais instantaneamente chame atenção. Todavia, as fendas – que iniciam na parte externa de um ou de ambos os lados do lábio superior e que podem se estender até o interior da boca, causando a ausência de separação entre as cavidades oral e nasal – afetam sobretudo aspectos funcionais, como a respiração, a fala e a deglutição. Atualmente, o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece uma série de tratamentos cirúrgicos que iniciam nos primeiros meses e se prolongam até a vida adulta com a finalidade de reparar não somente a funcionalidade, mas também a estética facial. Ainda há, contudo, adultos e crianças sem acesso ao tratamento no país.

Em uma de nossas conversas, André disse: “Eles pegam essa cicatriz e transportam para o seu corpo inteiro”, em alusão à maneira como as marcas deixadas pelas fendas parecem por vezes se sobressair aos demais aspectos individuais perante o olhar do outro. Aqui o rosto e aquilo que ele contém se dilatam e passam a equivaler, arbitrariamente, ao indivíduo. Para o antropólogo David Le Breton, nenhum espaço do corpo é mais apropriado para marcar a singularidade do indivíduo e expressá-la socialmente do que a face, já que, quanto mais uma sociedade confere importância à individualidade, maior é a relevância outorgada ao rosto e à sua aparência.

Mas, se conferimos tamanha centralidade ao rosto, por que damos tão pouca atenção às pautas referentes às fissuras labiopalatinas, a malformação facial congênita mais recorrente no mundo? Talvez porque nos deparemos com histórias de pessoas que realizaram as cirurgias e a fissura já não é mais visível ou porque aqueles que não tiveram acesso aos tratamentos estão de alguma forma apartados de nosso convívio, visto que, ainda hoje, há fissurados que não conseguem se inserir no mercado de trabalho, evadem do ambiente escolar ou mesmo vivem de maneira reclusa por medo do preconceito.

Todos os rostos contam múltiplas histórias. Os rostos fissurados, em especial, direcionam nosso olhar para a diversidade facial, a beleza das simetrias e assimetrias, a resiliência dos corpos que passaram por inúmeros procedimentos cirúrgicos e tratamentos fonoaudiológicos e ortodônticos. Mas, mais do que isso, contam, para quem assim quiser ler, que o rosto está em constante formação. Não apenas porque as nossas concepções sobre beleza e normalidade são contextuais e históricas, mas também porque a formação da face, aquela que se inicia na fase embrionária, não se finda ao nascermos.

Crescemos, envelhecemos, passamos por procedimentos estéticos e reparadores, ganhamos e perdemos cicatrizes. Ao contrário do que muitas vezes fomos ensinados, o rosto não diz tudo.

Entretanto, se lançarmos um olhar cuidadoso sobre a sua diversidade de formas e como as temos tratado, talvez possamos entender melhor quem somos enquanto coletivo.

 (*) Marcelle Schimitt é doutoranda no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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