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Ter doença rara desqualifica o meu direito ao acesso à saúde?

Por Priscila de Melo Side Gomes (*) | 10/04/2024 13:30

Com o advento da Lei 14.454/22, que alterou a Lei 9.656/98 (Lei dos Planos de Saúde), quanto à extensão de cobertura de procedimentos e tratamentos de saúde não elencados no rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), que regulamenta e normatiza os planos privados de assistência à saúde no Brasil, emergiu o intenso debate sobre a aplicabilidade dos critérios previstos no §13, incisos I e II da supracitada legislação e as implicações jurídicas tencionadoras afetas aos pacientes portadores de doenças raras e ultra-raras.

Nos termos da Portaria nº 199/2014, do Ministério da Saúde, que institui a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, considera-se referida condição, as doenças que atingem 65 pessoas a cada 100 mil indivíduos, sendo em sua grande maioria enfermidades de origem genética, o que enseja na maior especificidade das condutas clínicas e de tratamento disponíveis a este índice tão restrito da população afetada.

Dentre as doenças raras podemos citar a AME (Atrofia Muscular Espinhal), doença genética autossômica que acomete 1 a cada 10 mil nascimentos; fibrose cística, doença genética recessiva, com incidência de 1 a cada 10 mil nascimentos; ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), doença que acomete o sistema nervoso de forma progressiva e degenerativa com prevalência de 1 caso para cada 50 mil indivíduos; distrofia muscular de Duchenne, doença genética degenerativa dos músculos que controlam os movimentos, com índice de 3 casos a cada 100 mil pessoas; epidermólise bolhosa, alteração molecular genética que causa bolhas e erosões na pele, com 11 casos por milhão de habitantes; sarcoma de Ewing, neoplasia maligna de tecidos moles de origem genética, que afeta 1 a cada 1 milhão de pessoas, entre outras doenças de asseverada gravidade.

Infere-se que, em se tratando de doenças com baixa prevalência, os medicamentos e tratamentos de saúde direcionados às enfermidades são limitados. Ademais, aludida ocorrência é extensível aos estudos clínicos classificados na ordem de I a IV, sendo a última etapa a de vigilância pós-comercialização.

E visto o percentual escasso de indivíduos aptos para a pesquisa, tais condições e características obstam os desfechos necessários à conclusão destes estudos, reverberando o entrave ao acesso dos pacientes raros e ultrarraros às tecnologias em saúde, visto a complexidade das demandas terapêuticas para este grupo.

Os estudos clínicos são altamente necessários devido aos níveis de evidência que interferem na tomada de decisão para a recomendação de um medicamento ou tratamento de saúde, o que categorizados em ordem decrescente de nível de evidência, podemos elencar:

  1. revisão sistemática ou metanálise de todos os ensaios clínicos randomizados controlados;
  2. ensaios clínicos controlados e randomizados,
  3. ensaios clínicos controlados sem randomização;
  4. coorte de estudos analíticos de casos controle;
  5. evidências de revisão sistemática de estudos descritivos e qualitativos,
  6. evidências de estudo único descritivo e qualitativo e
  7. opinião de especialistas.

Referida situação coloca as doenças raras e ultra-raras num espectro de relativização quanto à análise das evidências clínicas acerca dos tratamentos, considerando que para tais patologias inexistem protocolos isolados ou pré-estabelecidos, o que invoca a revisão pormenorizada dos estudos alusivos a estes grupos de doenças, pois ainda que limitado o nível de estudos, tal fato não conduz a ausência de comprovação de eficácia, evidência, segurança e acurácia à luz da medicina baseada em evidências, o que atrai a análise de dados de mundo real (real world data) e evidências de mundo real (real world evidence), na tomada de decisões em pesquisas clínicas destinadas à saúde, estrutura criada pelo FDA (Food and Drug Administration), agência americana que regula dentre outros produtos, os medicamentos que serão comercializados em seu território.

Medicamentos órfãos - Neste cenário, impende destacar os medicamentos denominados órfãos, fármacos desenvolvidos para o tratamento das doenças raras e ultrarraras. Contudo, haja vista a limitação dos casos e o número exíguo de pacientes que necessitam destas medicações, não há um investimento massivo pela indústria farmacêutica para o estudo e desenvolvimento de tecnologias farmacológicas, o que conduz anteparo limitador de acesso aos portadores de doenças raras aos tratamentos de saúde tão imprescindíveis e necessários.

No âmbito jurídico, importante relevo foi alcançado com o advento da Lei 14.454/22, que incluiu no §13, da Lei 9.656/98 (Lei dos Planos de Saúde), a possibilidade de cobertura extra rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS, responsável pela regulação dos planos privados de saúde comercializados no Brasil.

O rol de procedimentos e eventos em saúde, atualmente vigente pela Resolução Normativa 465/21 e alterações posteriores de regulamentação e inclusão, elenca as coberturas mínimas obrigátorias a serem observadas pelas operadoras de planos de saúde em relação aos seus beneficiários, impondo asseverar que, antes da Lei 14.307/22, as tecnologias e diretrizes de utilização terapêutica eram atualizadas a cada dois anos, o que limitava o acesso dos usuários aos avanços da medicina traduzidos em tratamentos mais eficazes, efetivos e com menor toxicidade.

Neste sentido, o §7º, da Lei 14.307/22, trouxe relevante modificação na Lei 9.656/98, determinando que o processo de atualização do rol da ANS seja concluído no prazo de 180 dias e para as tecnologias em saúde concernentes aos tratamentos quimioterápicos, a redução para o prazo de 120 dias, visto a urgência e gravosidade das doenças neoplásicas, conforme previsto no §8º, cuja redação foi incluída pela lei supracitada.

Com a pacificação do entendimento acerca da exemplificidade do rol, também denominada taxatividade mitigada, conforme posição exarada pelo Superior Tribunal de Justiça, que excepciona a possibilidade de cobertura de tratamentos ou procedimentos que sejam prescritos pelo médico assistente e que não estejam contemplados no rol da ANS, tem-se a aplicabilidade nas seguintes hipóteses:

  • comprovação de eficácia à luz das ciências da saúde com base em evidência científica e plano terapêutico ou,
  • recomendação pela Conitec ou de um órgão de avaliação de tecnologia de saúde de renome internacional, desde que aprovados para seus nacionais.

É notório que, em se tratando de doenças raras e ultra-raras, é imperativo inafastável para as demandas judiciais em saúde, que o relatório médico elaborado pelo profissional que assiste o paciente seja guarnecido dos estudos clínicos que respaldam a prescrição, pois a limitação de estudos não enseja na ineficácia nem ausência de evidência quanto ao tratamento indicado, o que em sua maioria são moléstias de ordem genética e de natureza grave ou gravíssima, o que conduz à celeridade do tratamento e do risco de óbito a que estes pacientes são expostos, caso não sejam submetidos a linha terapêutica do médico prescritor.

Obrigação em caso de urgência - Nesta senda, a Lei 9.656/98 assegura a obrigatoriedade de cobertura pelas operadoras de planos de saúde, nos casos de urgência e emergência, cuja guarida é prevista nos artigos 35-C e 35-F, da Lei dos Planos de Saúde, e ainda, conforme disposto pela Resolução 1451/95, do Conselho Federal de Medicina, o que invoca típica conduta abusiva, a negativa promovida pelos planos privados de saúde, em evidente violação aos princípios da boa-fé e equidade e ainda, havendo cláusulas manifestamente onerosas e que coloquem os consumidores em desvantagem exagerada devem ser declaradas nulas, com supedâneo no artigo 51, incisos I e IV, da legislação consumerista.

Ressalta-se ainda para os casos inespecíficos de doenças de baixa prevalência a possibilidade do uso off label de medicamentos, costumeiramente denominados “fora de bula”, cuja finalidade terapêutica é diversa da constante no documento, que segue as diretrizes da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 47/2009, da Anvisa, inexistindo vedação para o uso, vez que a inclusão do registro para outras doenças não elencadas em bula é prerrogativa da farmacêutica detentora da tecnologia que envia para a submissão e análise do órgão de vigilância sanitária, os pedidos de inclusão de novas indicações de uso.

Imperioso consignar que a ausência especificada em bula não retrata a ineficácia ou ineficiência do medicamento para o tratamento de determinada doença, visto que, para outras agências reguladoras internacionais, haja a chancela para o uso e estudos embasadores para a prescrição médica e ainda, uma vez que o fármaco já passou pelo crivo da Anvisa, agência reguladora responsável pelo controle sanitário, autorização de registro e comercialização de medicamentos e insumos farmacêuticos no âmbito nacional, resta certificada a segurança, eficácia e qualidade dos produtos.

Sobre a aludida temática, assente o STJ sobre a obrigatoriedade de cobertura dos tratamentos de saúde, ainda que prescritos para uso off label ou experimental, vez que compete ao médico prescritor determinar a linha terapêutica a ser adotada ao caso específico do paciente, considerando a ausência de substituto terapêutico para a moléstia que o acomete.

Quanto ao segundo requisito elencado no §13, da Lei 14.454/22, não cumulativo, sobre a recomendação do procedimento pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS), ou de órgão de avaliação de tecnologia em saúde de renome internacional, imperiosa a amplificação do debate, sobremaneira quanto ao processo de ATS (Avaliação de Tecnologia em Saúde), que engloba as seguintes vertentes: análise clínica (segurança, efetividade, eficácia, indicações, população beneficiada e demais resultados); econômica (custo-eficiência, custo-efetividade, custo-utilidade, custos de oportunidade e impacto orcamentário); paciente (impacto social, ética, conveniência, aceitabilidade, reações psicológicas) e organizacional (difusão, logística, aceitabilidade, capacitação, utilização e sustentabilidade).

Em síntese, a ATS é o processo de avaliação de tecnologias em saúde versando sobre os tratamentos que serão disponibilizados na saúde pública, mediante recomendação de incorporação pela Conitec e disponibilizados via Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas estabelecidos para cada tipo de doença.

Embora o artigo 15, do Decreto 7.646/2011, disponha sobre o processo administrativo de incorporação, exclusão e alteração das tecnologias em saúde e das etapas necessárias, e ainda, do prazo de 180 dias para a oferta no SUS, após publicação da decisão para incorporação da tecnologia em saúde, previsto no artigo 25, cediço pelos operadores do direito da saúde que este interregno temporal não é efetivo na prática, conquanto a tecnologia seja aprovada no âmbito da eficácia, segurança efetividade e acurácia, tais fatores resvalam no custo-efetividade em disponibilizá-la no SUS, considerando o impacto financeiro ao erário público.

Tais condicionantes são fatores de entrave à dispensação das tecnologias tanto na saúde pública como na saúde suplementar em tempo hábil, dificultando o acesso dos pacientes aos avanços da medicina e aos tratamentos mais assertivos ao seu quadro clínico, o que ratifica o entendimento consolidado pela Lei 14.454/22, no que tange à exemplificidade do rol da ANS e o dever de cobertura de terapêuticas não previstas no elenco, porém imprescindíveis à salvaguarda da vida do beneficiário do plano de saúde.

Em relação ao escopo do inciso II, do § 13, da Lei 14.454/22, relativo aos órgãos de avaliação de tecnologias em saúde de renome internacional, tal conceituação ampla denota dúvida sobre quais serão categorizadas e elegíveis à espécie legal, dentre os quais pela relevância e importância internacional podemos citar o FDA (Food and Drug Administration) dos EUA, Health Canada, do Canadá, EMA (Agência Européia de Medicamentos), e inúmeras outras agências regulamentadoras existentes pelo mundo, o que comporta numa maior apreciação pelo Poder Judiciário, a fim de consolidar a hipótese legal à sua premente finalidade.

(*) Priscila de Melo Side Gomes é advogada especialista em Direito da Saúde, graduada em Direito pela PUC-MG, pós-graduada em Perícia Trabalhista e Previdenciária pela UNISEB-Estácio, pós-graduanda em Direito Médico e da Saúde pela Faculdade Legale Educacional e membro da Comissão Regional de Direito à Saúde – Sudeste/ABA.

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