Um pouco além da questão técnica
Em 2021, muitos pais e mães esperaram ter como presente de fim de ano a vacina contra a covid-19 aplicada nos braços de seus filhos que ainda não entraram na adolescência – aplicação que já acontece em vários países no mundo, entre eles Estados Unidos e Canadá. Entretanto, apesar do parecer favorável da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o governo brasileiro abriu consulta pública para verificar a posição dos brasileiros (adultos) quanto ao uso do imunizante na faixa etária de cinco a 11 anos. O inusitado da situação trouxe dúvidas sobre a cobertura vacinal destinada a esses pequenos cidadãos e se tornou um dos assuntos mais discutidos nessa reta final do segundo ano de pandemia. Entretanto, o jornalismo brasileiro avança quase nada quando se trata de refletir sobre a infância nesse momento. Os veículos jornalísticos pouco têm contribuído para esclarecer o que está em jogo neste caso (para além da guerra narrativa e ideológica) e ajudam a coisificar as crianças, novamente não apresentadas como sujeitos de direitos.
Há um rápido tecido a ser cerzido com poucos documentos acerca do segundo ponto, que nos interessa aqui: o que é direito da criança quando se trata de saúde? A Constituição Federal afirma o seguinte: "Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". No caso da covid-19, o direito à vida e à saúde estão indissoluvelmente ligados. No Brasil, 301 óbitos pela doença foram registrados na faixa etária que teve imunização agora liberada pela Anvisa. Só um cínico diria que é um número baixo.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também assevera, em seu artigo 4º: "É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária". Seu parágrafo único, complementa: "A garantia de prioridade compreende: a ) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias". A proteção integral à infância não pode ser entendida como uma possibilidade dentre muitas outras. Ela é obrigação da sociedade e direito de cada menina/menino que nasce nesse mundo, mesmo que em algum lugar as leis digam o oposto.
A exclusão dessas perspectivas da cobertura jornalística acaba por incluir a percepção de que o que acontece às crianças deve ser fruto apenas das decisões individuais de seus pais, como se eles não tivessem responsabilidades para com elas, apenas posse – e favorecem a ideia de que o Estado também não tem seu quinhão de obrigações.
Há um ditado africano, que se tornou muito popular nos últimos anos, segundo o qual "É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança". Além disso, é necessário compreender que as crianças são parte ativa dessa aldeia, são cidadãs e merecem ser tratadas como tal. Inclusive pelo jornalismo que parte em sua defesa.
(*) Rafiza Varão é doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília, na área de Teoria e Tecnologias da Comunicação.