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Capital

Além da fala: comportamento e gestos denunciam casos de abusos contra crianças

Psicólogas da Depca relatam como é feita abordagem e tomada de depoimento de vítimas de violência

Silvia Frias | 27/03/2022 10:28
Câmera utilizada durante tomada de depoimento especial, na Depca. (Foto: Henrique Kawaminami)
Câmera utilizada durante tomada de depoimento especial, na Depca. (Foto: Henrique Kawaminami)

A camisa vermelha estampada com a dentucinha Mônica chama atenção no visual da psicóloga, que conversa com três meninas franzinas na recepção da delegacia. Xará da personagem dos quadrinhos, ela se abaixa para falar com as crianças, entretidas com os brinquedos e a casinha instalada no local. “Oi, que meninas lindas! Quantos anos vocês têm?”.

Com idades de 3 a 7 anos, as meninas estão na Depca (Delegacia Especializada de Atendimento à Criança e ao Adolescente), em Campo Grande, aguardando atendimento. “Peraí, acho que eu que vou falar com vocês, a tia já volta, tá?”.

Nessa espera, a recepção com paredes coloridas e cheia de brinquedos, tenta minimizar o impacto do tortuoso caminho que crianças e adolescentes devem seguir até a sala da psicóloga, onde vão prestar depoimento e falar da violência a que foram submetidas, a maioria, vítima de estupro e maus-tratos.

O trabalho dessa equipe ficou em evidência este mês, depois que o fonoaudiólogo Wilson Nonato Rabelo Sobrinho foi denunciado por abusar sexualmente de seus pacientes. Até agora, a investigação indica que 5 meninos com idade de 2 a 8 anos foram vítimas do profissional. Pelo menos 200 crianças ainda serão ouvidas nesse caso.

Mônica trabalha há 2 anos na Depca: "Parece que tem 10". (Foto: Henrique Kawaminami)
Mônica trabalha há 2 anos na Depca: "Parece que tem 10". (Foto: Henrique Kawaminami)

Para chegar a esse relato, a Polícia Civil também precisa seguir caminho difícil, que passa por treinamento específico, paciência e acolhimento, com objetivo de conseguir da vítima as provas ou indícios que possam levar aos seus algozes.

Um dos recursos usados é o depoimento especial, previsto na Lei 13.431/2017 e serve como antecipação de prova em casos de violência sexual e quando a vítima tiver idade abaixo de 7 anos. As conversas são gravadas e somente podem ser feitas pelas autoridades policial ou judiciária. Caso a vítima não verbalize, as equipes fazem relatório, justificando porque não foi possível gravar.

Nesses casos, o relatório pode trazer outros elementos que ajudarão na composição da investigação: gestos, comportamento e olhares também são importantes para captar o que se passa com as vítimas que nem sempre conseguem ou podem recorrer às palavras.

Mônica Lourenço Dias, 46 anos, é psicóloga clínica, e atua como técnica na Depca há dois anos. “Mas parece que tem dez. É muito intenso, né?”. A equipe é formada por seis profissionais, entre psicólogos, assistente social e pedagoga que trabalham 40 horas semanais, em regime de escala. Um dos psicólogos é do sexo masculino, para dar opção para quem não se sentir à vontade com as outras profissionais.

Por dia, cada profissional ouve, em média, 12 relatos de possíveis vítimas dos mais diversos crimes.

“Aqui, o carro-chefe é estupro de vulnerável e maus-tratos”, explica Mônica. Na Depca, a equipe psicossocial é a “voz do delegado”. Somente o técnico e a vítima podem estar presentes na sala enquanto a conversa é gravada. O vídeo será anexado ao inquérito, sendo mantido em segredo de Justiça.

Na recepção, Mônica encontra crianças. (Foto: Henrique Kawaminami)
Na recepção, Mônica encontra crianças. (Foto: Henrique Kawaminami)

O depoimento especial prevê o direito de a vítima não falar. Em caso de consentimento, o técnico pode fazer intervenções, mas nada que direcione ou influencie no resultado do depoimento.

“A gente precisa deixar a criança à vontade”, enfatiza a psicóloga. Ganhar a confiança é processo que começa ainda na recepção da delegacia. “Abaixo na altura dela, olho no olhinho dela, falo ‘oi, eu sou a fulana, eu quero conversar um pouquinho com você’; ela não me conhece, precisa saber quem eu sou”, conta Mônica.

Muitas vezes, pai ou mãe acompanham até a sala para deixar a criança mais segura e começar a estabelecer vínculo. Devem sair assim que o consentimento for dado. “Algumas crianças ficam, outras não. Quando não ficam, não acontece o depoimento, porém, alguns registros são feitos a partir do relato do responsável”.

Estímulos – A reportagem teve acesso às salas do depoimento especial. Uma delas é pequena, estreita e sem brinquedos. Na mesa, a  pequena câmera fica virada para canto da sala, onde cadeira está posicionada. A outra sala, um pouco maior, é decorada com quadros de bailarina e menino com carrinho. Na mesa, uma girafinha e, no sofá, um ursão.

A inexistência ou escassez de objetos infantis é proposital. “A gente evita muito estímulo para que não tire a atenção deles”, explica Mônica.

A gravação não tem prazo de duração. A psicóloga conta que há relatos de 10, 15 ou 40 minutos, dependo do crime e/ou da idade da vítima. “Às vezes a criança chega aqui com 2 anos e não fala, mas tem criança de 3 anos que fala bem, tem de 6 que não, isso é muito relativo”.

Rosiane tem mais de 20 anos de experiência e já ouviu de tudo durante os depoimentos. (Foto: Henrique Kawaminami)
Rosiane tem mais de 20 anos de experiência e já ouviu de tudo durante os depoimentos. (Foto: Henrique Kawaminami)

O uso de bonecos anatômicos é possível, mas como último recurso e com crianças muito pequenas, já que pode ser entendido como método sugestivo. O objeto pode ajudar a mostrar o que aconteceu: em um deles, contou a psicóloga, a vítima colocou o bonequinho de quatro e mostrou com outro o “vovozinho”, sentado atrás.

No estímulo da fala, o técnico entra no universo da criança. “Eu uso a fala que ela usa comigo”, conta Mônica. “Teve uma que falou: 'tia, ele mexeu na minha chipa'”, referindo-se à vagina. “Aí vira chipa até o fim da conversa”.

A psicóloga Rosiane Basualdo Hernandes, 52 anos, tem mais de 20 de experiência na área, 14 deles, diretamente na Depca. “Durante o relato, a gente tenta pegar o gancho quando ela fala, aí a gente entra, eu tenho que trabalhar com o que ela me dá”.

Rosiane explica que não pode indicar nomes ou locais, mesmo que já constem na denúncia preliminar. “Não posso perguntar se foi o padeiro José, por exemplo. Se ela me diz que foi o padeiro, eu pergunto qual o nome dele, não posso falar 'Foi o José?', senão desconstruo tudo o que construí”.

Quando não é a fala ou a demonstração, o comportamento da vítima é a personificação da prova. “Tem quem fale que a criança não entende, ela entende sim, do jeito dela”, disse Mônica. A psicóloga diz que é perceptível pelo relato do responsável e no comportamento da criança, que reluta em falar. “É mecanismo de defesa, para enfrentar aquela dor”.

Nessas situações, é comum que a criança mude de assunto de forma brusca. “Ela fala que quer fazer xixi, beber água, fala que está frio; quando a gente percebe, não insiste”.

Paredes coloridas para amenizar ambiente da delegacia. (Foto: Henrique Kawaminami)
Paredes coloridas para amenizar ambiente da delegacia. (Foto: Henrique Kawaminami)

Em outros, mesmo com o acolhimento, permanece assustada. Foi o caso do menino de 8 anos, a primeira vítima conhecida do fonoaudiólogo Wilson Nonato Rabelo Sobrinho.

O caso é citado por Rosiane como um dos mais recentemente marcantes. A psicóloga conversou com a mãe de um menino de 10 anos com problemas neurológicos, paciente de Rabelo. O garoto não fala e tem dificuldade motora. A mãe soube do caso pelo noticiário e conversou com o filho, antes de ir à polícia.

Sentado no colo da mãe, respondia por meio de piscadas: duas para “sim”, uma para “não”. A mulher questionou: “O homem da boquinha (como chamavam o fonoaudiólogo) fez alguma coisa contra você?”. A resposta foram duas piscadas consecutivas.

Angústia - Tanto Mônica quanto Rosiane enfatizaram o mesmo foco no processo de lidar com a vítima: a de não revitimizá-la, ou seja, fazê-la reviver o trauma de forma desnecessária.

“Às vezes, a criança contou para mãe, para alguém da família, na escola, no Conselho Tutelar e muitos não acreditam; até chegar onde tem que chegar, ela foi revitimizada oito ou nove vezes”, explica Rosiane.

Angústia dos pais é não ter certeza do que aconteceu. (Fotos: Henrique Kawaminami)
Angústia dos pais é não ter certeza do que aconteceu. (Fotos: Henrique Kawaminami)

Quando o caso chega à polícia, a angústia dos familiares é saber se o crime aconteceu, principalmente o abuso sexual  sem penetração, quando não há marcas físicas evidentes na vítima. “As pessoas querem que a gente dê o veredicto e não é assim, a gente sempre usa a palavra pode, nunca afirma se foi ou não”.

Nos casos suspeitos, como os dos pacientes dos fonoaudiólogos, a orientação é que os pais fiquem atentos ao comportamento.

“Ouçam os filhos de vocês, observem o comportamento. A criança que é abusada, ela muda o comportamento, da água para o vinho. Se é quieta, tende a ficar falando demais, ou ao contrário, se fala muito, fica quieta, retraída”, explicou a psicóloga.

“Às vezes a criança quer falar, ela tá pedindo socorro, muitas vezes não chega a verbalizar, mas apresenta comportamento diferente. Tudo está ligado ao comportamento da criança. Se existe “segredo” para identificar, seria esse”, finalizou a psicóloga.

Porta da sala onde atendimentos são feitos: segredo garantido pela Justiça. (Foto: Henrique Kawaminami)
Porta da sala onde atendimentos são feitos: segredo garantido pela Justiça. (Foto: Henrique Kawaminami)


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