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Capital

Após 12 anos de morte no lixão, medo de mãe é perder túmulo de Maycon

Menino morreu soterrado no lixão, em 2011 e, agora, família precisa construir gaveta em cemitério público

Por Silvia Frias e Natália Olliver | 06/12/2023 15:21
De forma pausada, Lucilene Correa, mãe de Maycon relata a vida após a morte do filho (Foto: Juliano Almeida)
De forma pausada, Lucilene Correa, mãe de Maycon relata a vida após a morte do filho (Foto: Juliano Almeida)

Há 12 anos, o Natal é a data que faz o coração da diarista Lucilene Corrêa, 43 anos, se apertar, evidenciando uma ferida que nunca cicatrizou. “Foi a época que ele morreu, né?”, disse. A referência é sobre o filho Maycon Corrêa de Andrade, soterrado no antigo lixão no Dom Antônio Barbosa, aos 9 anos de idade.

No fim do dia 28 de dezembro de 2011, garoto e um amigo foram ao local em busca de material reciclável. Os dois escalaram a montanha de cerca de 30 metros de resíduos, acessada por dezenas de catadores àquela época. Houve desmoronamento e Maycon acabou soterrado, sendo encontrado no dia seguinte, 20h depois.

A tragédia foi revisitada pelo Campo Grande News no mês passado, mostrando a morosidade judicial para indenizar a família pela morte do menino. Com precatórios pendentes, a previsão é que os valores somente sejam pagos em 2025.

Corpo de menino foi encontrado após 20 horas de buscas (Foto/Arquivo)
Corpo de menino foi encontrado após 20 horas de buscas (Foto/Arquivo)

Novamente a burocracia se faz presente e angustia Lucilene. A prefeitura de Campo Grande determinou a readequação de todos os jazigos em cemitérios públicos, medida ambiental para tirar os caixões que foram colocados diretamente no solo, sendo necessária a impermeabilização do terreno, construção de gavetas e limpeza geral. O custo deve ser arcado pelo responsável, valor médio de R$ 1,5 mil.

A determinação foi o motivo que a fez procurar a reportagem, depois de não responder às tentativas de contato, em novembro. Sentada na varanda de casa, no Bairro Dom Antônio Barbosa, Lucilene conta que tem perdido o sono depois que foi notificada pela prefeitura, este ano. Com os braços cruzados ou com uma das mãos no rosto, ela parecia tentar se controlar para falar, de forma pausada e com lágrimas constantes.

O sepultamento, no cemitério do Cruzeiro, em Campo Grande (Foto/Arquivo)
O sepultamento, no cemitério do Cruzeiro, em Campo Grande (Foto/Arquivo)

“É a minha maior preocupação, isso atormenta minha cabeça, tem vez que eu nem durmo”, disse, emocionada. “Fiquei pensando, pensando, e resolvi falar, porque isso não sai da minha cabeça; se tirar ele de lá, eu morro junto, vou morrer junto com ele”, afirmou.

Além da gaveta, a diarista quer construir uma casinha para colocar lembranças de Maycon. Um pequeno helicóptero e a parte de cima de jet sky, dois brinquedos desgastados pelo tempo, e a camisa do Corinthians, que permaneceu sem lavagem até hoje. “Eu não lavei porque cheirava a camisa, tinha o cheiro dele, não tem mais; mas vou lavar para colocar lá”. Sorri, ao lembrar. “Olha o tamanho, parecia um vestido nele”.

Nos últimos 12 anos, a vida seguiu o curso e Lucilene se deixou levar. Se mudou de casa, mas permaneceu no bairro, hoje, numa casa alugada, distante 1,5 quilômetro do local onde Maycon foi soterrado.

Dos quatro filhos, três ainda moram com ela, sendo um rapaz com deficiência, de 22 anos, e dois adolescentes, de 16 e 15 anos. A mais velha, de 26 anos, já lhe deu três netos, um deles chamado Maycon Daniel, homenagem prestada ao irmão morto, que hoje teria 21 anos. Sobre o ex-marido, Reginaldo Pereira de Andrade, pai de Maycon, contou que não tinha contato e ficou sabendo da morte dele, ocorrida em agosto. Diz que pediu que os filhos fossem ao enterro.

Lucilene mostra as lembranças do filho: camisa do Corinthinas e dois brinquedos (Foto: Juliano Almeida)
Lucilene mostra as lembranças do filho: camisa do Corinthinas e dois brinquedos (Foto: Juliano Almeida)

O sustento da casa é mantido com Bolsa Família, a pensão de R$ 410,00, que passou a ser paga em dezembro de 2022, como parte da decisão judicial da ação de indenização por danos morais, pela morte de Maycon, e os bicos como diarista. Por causa do filho especial, Magno Eliezer, que precisa de cuidados constantes, não consegue trabalhar todos os dias.

A diarista recorreu à Justiça para que Magno Eliezer possa receber benefício assistencial por deficiência, já que o pedido inicial feito no INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) havia sido indeferido. O processo foi protocolado em fevereiro desse ano, no Juizado Especial Cível do TRF3 (Tribunal Regional Federal) da 3ª Região, e está na fase de pedidos de laudo pericial, sem data para ser julgado.

No antebraço, a tatuagem feita em homenagem ao filho (Foto: Juliano Almeida)
No antebraço, a tatuagem feita em homenagem ao filho (Foto: Juliano Almeida)

Tempo - Além da pensão, a Justiça deferiu o pagamento de indenização de R$ 30 mil para ela e R$ 10 mil para cada um dos quatro irmãos de Maycon. “Não vai tampar a minha dor. Vai ajudar? Realmente, vai ajudar, mas a dor vai ser a mesma, com ou sem dinheiro”.

A decisão responde a ação protocolada em 2012 e que finalmente transitou em julgado no dia 29 de outubro de 2021. No dia 25 de novembro de 2023, a 3ª Vara de Fazenda Pública e de Registros Públicos efetuou o cadastro preliminar para o pagamento dos precatórios, em valores corrigidos quando forem pagos, provavelmente, em 2025.

“Nem sei o que falar disso, demorou demais, vai demorar, né? Até 2025 já tiraram ele de lá”, disse, aflita, em nova referência à readequação do jazigo.

A impermeabilização dos túmulos nos cemitérios do Cruzeiro e Santo Amaro está prevista em edital publicado pela Prefeitura de Campo Grande em março deste ano. Os responsáveis devem procurar as administrações dos locais para atender as exigências da Sisep (Secretaria Municipal de Infraestrutura e Serviços Públicos).

No velório, em 2011, Lucilene desmaiou e precisou ser amparada (Foto/Arquivo)
No velório, em 2011, Lucilene desmaiou e precisou ser amparada (Foto/Arquivo)

A partir daquele período, foram estipulados prazos para cumprimento da decisão, mas, agora, segundo o gestor geral dos cemitérios públicos, Marcelo Fonseca, a regularização deve ser feita até o próximo sepultamento. “O que não pode ocorrer é a família ter um lote no solo e, infelizmente ter um óbito, e querer sepultar, isso não pode. O quanto antes regularizar a situação de construção de gavetas, melhor para as famílias”, explicou.

Os donos de lotes que não realizarem a obra de concretagem e construção de gavetas perderão o direito ao espaço, e os restos mortais do familiar enterrado serão retirados e enviados aos ossários. O lote, então, voltará ao domínio do poder público.

Sobre o caixão, enterrado diretamente ao solo, a foto do garoto (Foto/Arquivo)
Sobre o caixão, enterrado diretamente ao solo, a foto do garoto (Foto/Arquivo)

Lembranças – Mais que dor, Maycon é memória para mãe. Sem fotos do menino, perdidas depois de incêndio que destruiu o guarda-roupa, recorre ao semblante do segundo filho, Magno Eliezer. “Eles se parecem muito, eu lembro todo dia dele [Maycon]”.

No Dia de Finados, Lucilene foi até o cemitério visitar o túmulo. “Carpi, coloquei uma cruz, arrumei tudo”, lembra. No local, a cova sem gaveta é delimitada por tijolos, onde uma cruz azul foi colocada. Um vaso de flores de plásticos e restos de velas dividem espaço na construção.

Sobre o dia da morte, pouco falou. Só que não sabia que o filho ia ao lixão para catar material reciclável. Prefere contar da melhor lembrança derradeira, a do menino cantando louvor na igreja, “um bonito, do Regis Danese”, do medo que ele tinha de morrer e do mundo acabar em 2012, profecia que circulou naquele ano, e do jeito carinhoso que o garoto a tratava.

“Imagino que ele ainda seria pessoa carinhosa, mas também bravo, porque ele era muito bravo”, suspira. “É o amor da minha vida, sempre vai ser, tenho mais quatro filhos, mas ele...”, fala, fazendo nova pausa. “Maycon é tudo, ele vai ser para sempre tudo”.

No cemitério do Cruzeiro, tijolos delimitam cova na quadra 18, onde Maycon foi sepultado (Foto: Paulo Francis)
No cemitério do Cruzeiro, tijolos delimitam cova na quadra 18, onde Maycon foi sepultado (Foto: Paulo Francis)

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