Maycon, o menino que o lixo matou e a Justiça esqueceu há 12 anos
Garoto morreu em 2011 e processo de indenização se arrasta desde 2012; pai morreu este ano
“Corpo estava em decúbito lateral direito, disposto em meio aos resíduos de lixo domiciliar. Tratava-se de ser humano, do sexo masculino, da cor parda, cabelos crespos, criança, de estatura mediana (...) tinha bermuda azul e tênis tipo botina marrom no pé esquerdo, estando o pé direito descalço. Usava pulseiras plásticas no braço esquerdo”.
Antes de se tornar corpo de análise para o olhar profissional da perícia da Polícia Civil, em vida, a criança descrita era Maycon Corrêa de Andrade.
No fim da tarde de 28 de dezembro de 2011, Maycon, acompanhado de amigo de 11 anos, foi ao antigo lixão no Bairro Dom Antônio Barbosa em busca de material reciclável. Escalou a impressionante montanha de 30 metros de resíduos, acessada por dezenas de catadores àquela época, às margens da rodovia, na saída para Sidrolândia. Houve desmoronamento e o garoto acabou soterrado pelo lixo.
As buscas envolveram sofrimento dos pais e a comoção da população. Defesa Civil, Corpo de Bombeiros, catadores e funcionários do lixão se jogaram no trabalho de revirar toneladas de lixo, em busca do menino. O corpo foi encontrado no dia seguinte, após 20 horas do soterramento. Maykon morreu aos 9 anos de idade, em consequência da asfixia mecânica por compressão torácica e obstrução de vias aéreas superiores.
Passados 12 anos da tragédia, o caso caminha a passos lentos para desfecho. No dia 25 de novembro, a 3ª Vara de Fazenda Pública e de Registros Públicos efetuou o cadastro preliminar para o pagamento dos precatórios que serão dados de indenização por dano moral aos pais e aos quatro irmãos de Maycon, em valores corrigidos.
Para o pai, Reginaldo Pereira de Andrade, a decisão chegou tarde. O pedreiro de 45 anos morreu no dia 28 de agosto deste ano, segundo atestado de óbito, por complicações da tuberculose.
“O que fica disso tudo? Nem sei falar para você”, disse, muito emocionada, a irmã de Reginaldo, a dona de casa Cleomar Vieira de Andrade, 50, que passou os últimos quatro anos cuidado do irmão, no Jardim Tarumã. “Ele era muito reservado, não falava do Maycon”, recorda-se. Das poucas vezes que se referia aos filhos, chorava e dizia que estava com saudades.
Cleomar, ainda em luto e se recuperando de AVC, conversou com a reportagem. Reginaldo e a mãe de Maycon, Lucilene Corrêa, já estavam separados havia dois anos quando o garoto morreu no lixão. “Depois que aconteceu isso aí, ele se largou”, lembra Cleomar. O pedreiro era alcoólatra e a bebida acabou o afastando de vez dos quatro filhos, que não tinham mais contato com o pai.
Antes de ser acolhido pela irmã, Reginaldo esteve internado no Hospital São Julião por sete meses, por conta da tuberculose. Ele também fazia tratamento de diabetes e depressão. Teve alta durante a pandemia e foi morar com Cleomar. “A gente cuidava, virou um bebê”, conta o cunhado, Luís Carlos Leguissamon, 46 anos. Reginaldo permanecia lúcido, mas precisava de ajuda para banho, para se locomover e usava fralda. Cleomar enxuga as lágrimas e aponta em direção a uma cadeira na varanda. “Ele sentava ali, ficou dependente, de tudo. Sei que sentia falta do filho que perdeu, mas não falava dele [Maycon], ficava quieto, vivia no mundo dele”.
Em agosto, a irmã notou que Reginaldo passou a comer pouco e o levou à unidade de saúde no Bairro Tiradentes. Identificaram anemia, deram bolsa de sangue. Foi para o Hospital Regional, ainda consciente. Segundo Cleomar, teve convulsão e, depois disso, não falou mais. Um dia e meio depois da internação, morreu. “Ele esperou eu chegar, morreu comigo”, contou. Embora tenha sido atestada morte por tuberculose como causa da morte, a irmã ainda duvida do resultado.
Luís Carlos lamenta que somente agora a Justiça tenha finalmente definido que os valores serão pagos. “Poderia ter ajudado no tratamento dele, poderíamos ter feito mais por ele”.
O casal não tem contato com os sobrinhos ou com Lucilene Corrêa, mãe de Maycon. Ela trabalha como diarista e ainda mora no Dom Antônio, cuidando dos filhos ainda menores, de 15 e 16 anos, e de um filho especial, de 22 anos. A mais velha está com 26 anos.
A reportagem foi até o antigo endereço, mas ela já havia se mudado e os vizinhos falaram que a família ainda está pelo bairro, mas não souberam precisar a nova localização. Lucilene não respondeu aos contatos feitos pelas redes sociais pelo Campo Grande News.
Danos morais – A ação indenizatória foi protocolada no dia 20 de agosto de 2012 contra o Município de Campo Grande, àquela época, responsável pela área do lixão.
No documento, consta que não havia controle da portaria e o local era delimitado por cercas e alambrados. Os catadores pulavam a proteção e entravam facilmente, transitando com liberdade pela montanha de lixo. Buracos eram abertos nas cercas e, por ali, também passavam as crianças, que catavam material para juntar alguns trocados.
A ação também relata que no local havia placa de entrada, classificando a área como aterro sanitário, embora não seguisse as normas sanitárias vigentes para a situação. “Não havia compactação dos resíduos, eram simplesmente empurrados até se tornarem montanhas de dejetos”.
Depois da tragédia, relata a petição inicial, “os agentes públicos foram colocados para fazer segurança no local, medida paliativa que não resolve o problema e demonstra que o réu foi omisso”. Na ação, foi pedida indenização por dano moral de R$ 500 mil.
Em novembro de 2012, o Município contestou, alegando que a área no entorno era cercada. Porém, pela extensão, “pessoas não autorizadas” acabavam entrando no local. “(...) sem que isso configure omissão culposa por parte do Município (...) não há como exigir que o mesmo esteja presente em todos os lugares”. A PGM (Procuradoria-Geral do Município) avaliou que a responsabilidade era dos pais, que foram omissos nos cuidados.
Investigação - Enquanto a ação tramitava, o inquérito policial aberto em 2011, que apurava eventual homicídio culposo, corria com vários pedidos de prorrogação de prazo, conforme despachos anexados em 2012 e 2013.
Depois de dezenas de interrogatórios, a conclusão do inquérito veio no dia 8 de janeiro de 2014: “não há como indicar especificamente qualquer das pessoas envolvidas e ouvidas nesse inquérito policial como responsáveis por crime de homicídio culposo, por absoluta falta de tipicidade e autoria configurada”. Embora aponte a falha de segurança, a investigação não foi conclusiva sobre o nível de responsabilidade do Município.
O MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul) pediu pelo arquivamento do caso, tendo avaliação seguida pela juíza Eucélia Moreira Cabral, da 3ª Vara Criminal. A ressalva é que havia elementos para indiciar os pais de Maycon, por omissão de cuidado, mas, em decorrência da morte do filho, decidiu pelo perdão judicial, ou seja, sem oferecimento de denúncia. A sentença foi registrada em novembro de 2014.
Morosidade – Dois anos depois do arquivamento do inquérito, o processo por dano moral ainda seguia, a passos lentos.
Nas alegações finais, o Município usou como defesa a dificuldade de vigilância no local, a omissão dos pais e o resultado do inquérito policial, que não apontou culpados. O MPMS contestou, alegando que, mesmo tendo zelo com os filhos, o “evento não estaria descartado de ocorrer”, já que o acesso ao lixão era “franqueado a qualquer pessoa”.
No dia 20 de agosto de 2018, o juiz Zidiel Infantino Coutinho, da 3ª Vara de Fazenda Pública e Registros Públicos, foi favorável aos argumentos da ação. O magistrado usou informações da perícia no local, que demonstrou o risco iminente: má distribuição do lixo, acúmulo de material de difícil compactação em um só local, infiltração de água de chuva, a perigosa fórmula que desencadeou a ruptura e desmoronamento do talude [terreno inclinado].
O magistrado avaliou. “(...) a falha na prestação de serviços é evidente; ademais, o réu também agiu de forma omissa e falha, ao permitir a entrada de crianças no local”.
Na sentença, o juiz optou pela indenização de R$ 30 mil para cada um dos pais e R$ 10 mil para cada irmão. Aos pais, também foi definido o pagamento de pensão, na proporção de dois terços do salário mínimo, contado a partir do dia em que Maycon completaria 16 anos (2018) até a data que completaria 25 anos (2027). A partir daí, a pensão seria de um terço do salário até a morte de um dos beneficiários ou até quando a vítima completaria 75 anos (2077), o que ocorresse primeiro. Todos os valores serão corrigidos até a data do pagamento.
O Município e os advogados dos pais apelaram, questionando os valores, mas a decisão foi mantida pela 3ª Câmara Cível do TJ-MS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul). Sem novas contestações, o acórdão transitou em julgado no dia 29 de outubro de 2021.
A pensão começou a ser paga em dezembro de 2022, conforme documentos contidos na ação. No caso de Reginaldo, conforme consulta feita pelo Campo Grande News a advogados da área, o benefício será cancelado. A indenização que ainda será paga por meio de precatórios, será repassada aos herdeiros, culminando em outro processo burocrático: a abertura de inventário ou acordo extrajudicial.
O pagamento de precatório é processo moroso. Após a conferência dos dados lançados com os cálculos dos valores, tanto pelos credores como pelo devedor, o juiz vai assinar o documento e enviar ao Tribunal de Justiça. Se este trâmite for feito até abril de 2024, o pagamento sai em 2025.
Enterrado – A morte de Maycon acelerou o fim do lixão, chamado de aterro sanitário Dom Antônio Barbosa I, da forma como existia. Em dezembro de 2012, um ano após a tragédia, o local foi desativado, iniciando nova fase, com a construção, ao lado do aterro Dom Antônio Barbosa II, este, seguindo todos os trâmites de segurança e sanitários vigentes, sob responsabilidade da concessionária CG Solurb.
A gigantesca pilha de lixo foi encoberta e, agora, repousa a um metro de profundidade. Por cima, a grama cresceu, deixando terreno fofo e irregular. O local ganhou canaletas para escoamento de água e foi compactado, com platôs entre os taludes para evitar qualquer ameaça de desmoronamento.
Fim - No dia da morte de Maykon, uma equipe do jornal O Estado fazia reportagem no lixão e, por acaso, flagrou os dois amigos, de bicicleta. De costas, os detalhes descritos pela perícia: o short azul, as botas e o dorso franzino, sem camisa.
Depois da tragédia, durante as buscas, o corpo do garoto só foi encontrado com a ajuda do catador José Vilmar de Lima. Ele presenciou o desmoronamento, conseguiu salvar o amigo de Maycon e viu quando o outro garoto desapareceu sob os resíduos. Ainda ficou pelo local, indicou onde o menino poderia estar, mas foi ignorado.
Foi para casa e, no dia seguinte, quando voltou para trabalhar, viu que as buscas continuavam. Novamente apontou a área, sendo levado a sério pelo então coordenador da Defesa Civil, Sebastião Rayol. “Joga uma pedra onde você acha que está”. Feito isso, a retroescavadeira entrou em ação e o corpo da criança foi içado em seguida, já afetado pelo calor e pelo chorume. No pé direito, a ausência da bota, descrita pela perícia.
Maycon está sepultado na quadra 18 do Cemitério do Cruzeiro.
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