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Reportagens Especiais

Precisamos falar sobre o Kauan: vítima aos 9 anos da pobreza e barbárie

“Ninguém na vida teve tantos pecados que mereça morrer duas vezes” (José Saramago)

Aline dos Santos | 31/12/2017 08:21
Precisamos falar sobre o Kauan: vítima aos 9 anos da pobreza e barbárie
Kauan tinha nove anos e estudava no primeiro ano do ensino fundamental. (Foto: André Bittar)
Kauan tinha nove anos e estudava no primeiro ano do ensino fundamental. (Foto: André Bittar)

No aziago mês de julho, em que a violência repercutiu pela cidade, Janete dos Santos Andrade soube pelos sites de notícias que não adiantava mais procurar: Kauan, um dos seus sete filhos, fora vítima de um crime brutal.

Era o fim para o menino, que aos nove anos ainda estudava no primeiro ano do ensino fundamental, amava pipa e feijão; e, depois, viríamos a saber, não tinha nem ao menos uma escova de dente de uso exclusivo.

Apesar de ninguém na vida ter tanto pecados que mereça morrer duas vezes - como nos lembra o ateu escritor português na abertura dessa reportagem-, o menino, cujo corpo nunca foi encontrado, morreria de novo em 25 de agosto, quando a polícia deu detalhes de quão cruel foi o desfecho do caso.

A coletiva sobre a morte de Kauan Andrade Soares dos Santos adicionou ao crime mais um capitulo de barbárie. Quatro adolescentes, com idades entre 14 e 16 anos, afirmaram que foram obrigados a praticar necrofilia (sexo com cadáver) e testemunharam o suspeito Deivid Almeida Lopes, 38 anos, esquartejar o corpo do menino. Preso desde 21 de julho, o adulto nega o crime.

Na data de 22 de julho, um adolescente de 14 anos já havia revelado que no dia 25 de junho levou o garoto até à casa do professor, título com o qual o suspeito se apresentava por já ter dado aulas. Onde, por ordens de Deivid, segurou as mãos do menino para que o preso o violentasse. A criança foi amordaçada e desfaleceu. 

Em 25 de julho, Janete acompanha buscas pelo corpo no rio Anhanduí e volta para a casa chorando.
(Foto: André Bittar)
Em 25 de julho, Janete acompanha buscas pelo corpo no rio Anhanduí e volta para a casa chorando. (Foto: André Bittar)

Filho de pobre - Quatro meses depois, Janete têm os olhos verdes fadigados de chorar e o medo da impunidade. “Kauan é filho de pobre”, resume. Na casa de tijolos sem reboco e no contrapiso, no Jardim Colorado, em Campo Grande, um ursinho de porcelana figura na parede da sala simples.

A mensagem é de saudades eterna pelo menino e o adereço faz parte da solidariedade, que levou muitas pessoas a visitar a família. Hoje, a procura rareia.

Para a mãe, a última lembrança data de 25 de junho. O menino tomava café da manhã quando um colega o convidou para brincar. Como Kauan não voltou, a procura pelo menino logo chegou à policia e ganhou o noticiário.

Depois da confissão do adolescente, os bombeiros se lançaram às águas do rio Anhanduí, onde o suspeito teria se desfeito dos restos mortais do menino. Mas nada foi encontrado.

Sem corpo e sem Kauan, a mãe se vê presa a temores, mesmo que reconheça ser infundado, como de o menino ser mantido em cárcere privado.

A aposentada Nilza dos Santos, 73 anos, ainda se habitua aos dias sem o neto. A tristeza pela perda do “companheirinho” vem nas horas incertas. Se coloca o feijão na panela, lembra que era o prato que menino tanto gostava.

Quando vai receber a aposentadoria, recorda que ia acompanhada por Kauan, o menino que logo transformava o dinheiro, que recebia como agrado da avó, em salgadinhos e bolacha. Se olha para a rua, vem à mente a imagem do garoto correndo de um lado para o outro, brincando com uma pipa.

Ursinho na parede da sala fala de saudade e foi doado à família. (Foto: André Bittar)
Ursinho na parede da sala fala de saudade e foi doado à família. (Foto: André Bittar)

A entrevista, numa tarde chuvosa de dezembro, é acompanhada pelas irmãs mais velhas e pelos olhos triste do irmão de seis anos. Para os irmão menores, que estavam na creche, o menino viajou. No ventre, Janete tem mais uma criança. Se for menino, será Kauê, em homenagem para um Kauan que não vai voltar.

Pobreza e violência – Cuidando de carros pela rua, o menino se enquadra no conceito de vulnerabilidade social. Numa leitura sem eufemismo, é o retrato de que a pobreza mata. Conforme as investigações, Kauan foi à casa do agressor em busca de um "dinheirinho". Também vítima de estupro, garotos relataram que recebiam entre R$ 5 e R$ 15 de Deivid.

Ele morava no Coophavila 2 , onde era conhecido como professor, pelo fato de já ter lecionado em escola, mas atualmente, tinha uma banca de capinhas para celulares na feira do bairro. No caso, além da crueldade dos fatos narrados, chamaram a atenção a frieza do investigado e o silêncio dos vizinhos.

Avó de Kauan, o menino à esquerda no retrato,   chora a tristeza que chega nas horas incertas. (Foto: André Bittar)
Avó de Kauan, o menino à esquerda no retrato, chora a tristeza que chega nas horas incertas. (Foto: André Bittar)
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