250 mil mortes e argumentos de poder
A grande maioria dos brasileiros não tinha nascido quando Hiroshima e Nagasaki foram destruídas por duas bombas atômicas. Acredito, porém, que esse episódio é bem conhecido. Calcula-se que, nesses dois ataques nucleares, o número de vítimas foi da ordem de 250 mil. Análises estratégicas, éticas e políticas ainda estudam essa catástrofe, pois o uso militar da energia nuclear e o dano que causou são temas recorrentes devido, em parte, à resultante magnitude da perda de vidas. Até hoje não existe clareza se o elemento decisivo, que levou à rendição do Japão em 1945, foi de fato a bomba atômica ou a invasão da Manchúria pela União Soviética.
Pois bem. Neste ano que passou morreu de covid-19 um número de brasileiros que equivale aos que perderam a vida por causa do bombardeio nuclear. A sensação que me invade é a de que, apesar de a magnitude dos eventos ser essencialmente equivalente, boa parte dos brasileiros ainda não tem dimensão da tragédia.
Os eventos somente são comparáveis pelo número de vítimas, pois vírus e bombas são elementos muito diferentes. Mas se no pandêmico Brasil a magnitude da tragédia causa espécie, o espanto decorre da presunção de que boa parte das mortes poderia ter sido evitada por elementos que, lembrados com frequência, não parecem estar socialmente interiorizados, e, portanto, devem ser repetidos.
Um dos elementos que poderiam ter sido usados para mitigar a pandemia é o SUS, e mais precisamente as Unidades Básicas de Saúde (UBS). As UBS, em parceria com os municípios, permitiram que metade dos domicílios brasileiros recebessem, pelo menos, uma visita mensal de um agente de saúde. À época, 2013, eram 44 mil unidades. Para esclarecer a importância deste fato, mundialmente inédito para um país continental, é adequado explicar a natureza de uma UBS.
Tomo como exemplo uma UBS da zona leste de São Paulo, que tem a responsabilidade de atender uma região com 15 mil habitantes. A estrutura da UBS conta com cinco médicos, cinco enfermeiros, 10 auxiliares de enfermagem e 25 agentes comunitários. Médicos, enfermeiros e auxiliares atendem cidadãos na unidade, a menos que os casos necessitem de visita domiciliar. A responsabilidade dos agentes comunitários é distinta. Eles se deslocam até os domicílios, num rodízio que garante que cada família receba, pelo menos, uma visita mensal. Os relatórios das visitas dos pacientes à UBS, bem como aqueles dos agentes comunitários, permitem que este universo seja detalhadamente conhecido. Esta relação, pessoal e de confiança, entre instituições de saúde do Estado e as famílias residentes na área, permite contar com completas informações sobre o estado de saúde desses cidadãos. Na pandemia presente, isso permitiria identificar portadores, contatos, bem como os indicadores referentes à doença.
As UBS começaram a informar às famílias sobre a covid-19 já no começo de março de 2020. Diversos membros das UBS reconhecem que a informação era reduzida e pouco regular, mas que se fez um esforço importante de divulgação. Apesar da familiaridade existente entre os trabalhadores das UBS e os moradores da região e das mortes por covid-19 já ocorridas, ainda hoje há vizinhos que insistem em entrar na UBS sem máscaras, que participam de festas clandestinas e continuam a se infectar. Como explicar este fato?
Uma explicação possível passa pela análise das fontes de informação da população atendida pela UBS, pois é possível que a fonte primária de informação seja a televisão. Segundo dados de 2018, das 69 milhões de casas consultadas no Brasil, 97% têm uma TV ou mais. Apesar de o índice de cidadãos conectados à internet crescer a cada ano, ainda está distante de atingir o número de brasileiros com TV em casa. Portanto, pode-se assumir que, em 2021, a TV ainda é mais influente do que a internet.
E aqui, desafortunadamente, é necessário se repetir que o líder máximo do País, seu presidente da República, aparece todos os dias na televisão contradizendo com veemência as recomendações que essa UBS passa para as 15 mil pessoas que bem conhecem. É evidente a opção do morador frente a um conflito de versões que opõe o médico (ou o enfermeiro, o auxiliar ou o agente comunitário) ao presidente da República Federativa do Brasil. Quando ouve do jovem agente comunitário que a covid-19 é perigosa e, à noite, escuta do presidente que essa doença não passa de uma “gripezinha”, qual versão vai prevalecer nessa família? O vizinho que, vindo do médico da UBS que o examinou por uma dor abdominal, e que nos 15 minutos da consulta aproveitou para lembrá-lo de que não existem remédios preventivos que curem o Sars-Cov-2, escuta à noite que a cloroquina mata o vírus. É realmente possível que esse vizinho ou não volte à UBS, pois passa a não acreditar no seu médico, ou exija tratamento que acredita ser preventivo. Todo o esforço do enfermeiro de convencer os cidadãos dessa UBS de que devem usar máscara para tomar o ónibus que de manhã os conduzem ao trabalho, vem por água abaixo se o presidente da República insinua que as máscaras podem causar doenças. Que dizer, então, de um deputado federal que aparece na TV insultando a policial federal que insiste em não permitir o ingresso em um recinto médico sem máscara?
Argumentos emitidos com base no poder de quem os emite, ou argumentos de autoridade, são facilmente aceitos por aqueles que não foram treinados para, ao analisá-los, poder refutá-los. No Brasil, infelizmente, a qualidade do ensino garante que esse treinamento não prevaleça. Assim a luta pela informação também pode ser percebida como uma demonstração de que o poder do argumento se dá, somente, pelo poder de quem o emite.
A ciência claramente demonstrou que podemos enfrentar, ainda que a um custo muito alto, esta pandemia. Enfrentar as futuras e prováveis pandemias vai requerer ainda mais ciência. Mas, sem uma educação que permita aos cidadãos julgar se argumentos efetivamente se sustentam em evidências, ou apenas no poder de quem os emite, até mesmo a ciência pode perder força.
(*) Hernan Chaimovich é professor Emérito do Instituto de Química da USP e ex-presidente do CNPq