A cobertura vacinal infantil deve aumentar
O Brasil precisa vencer a campanha antivacinação infantil protagonizada pelo Governo Federal e seus sabujos negacionistas para proteger suas crianças contra a Covid-19. Como cientistas, é nossa responsabilidade trazer as melhores informações científicas, verdadeiras, confiáveis e transparentes. É nossa responsabilidade como pais, ajudar a esclarecer de forma honesta e sincera as dúvidas de outros pais, avós e responsáveis por nossas crianças. É nosso dever como cidadãos brasileiros, lutar contra os antivacinas, os disseminadores de mentiras e contra o monstro do negacionismo e do obscurantismo intelectual que tomou conta desse país.
A ciência deu uma resposta extraordinária nesta pandemia: temos vacinas que salvam vidas. Temos razões epidemiológicas, sanitárias, éticas e morais para vacinar nossas crianças. As crianças estão em processo de formação e incentivar a vacinação tem um caráter educativo, pedagógico, de transmissão de valores como empatia, respeito pela vida, dignidade humana e responsabilidade social. É um enorme aprendizado de cidadania para nossas crianças, entender a importância da vacinação para a proteção da coletividade, que decisões individuais têm reflexo no coletivo e que o impacto dessa escolha pode evitar casos graves, internações e óbitos não só de crianças, mas de todas as pessoas.
Óbitos na faixa 0-19 anos por Covid-19
Segundo dados dos Boletins Epidemiológicos (BE) do Ministério da Saúde (MS) – BE 100 (último com dados de 2022), BE 92 (último com dados de 2021), BE 44 (último com dados de 2020) – desde o início da pandemia, foram 2.842 mortes por Covid-19 na faixa etária 0-19 anos, sendo 863 óbitos na faixa menor que 1 ano, 448 na faixa de 1 a 5 anos e 1.531 entre 6 e 19 anos. Esses números estão subnotificados e desatualizados, pois segundo os boletins, o total de óbitos por Covid-19 no período 2020 a 2022 até o momento é de 579.991. O total de óbitos levantados pelo consórcio de imprensa é de 644.695 e mostra uma diferença de 64.704, sugerindo que o total de óbitos na faixa 0-19 anos é ainda maior.
Aprovação de vacinas pediátricas pela Anvisa
A Anvisa aprovou a ampliação do uso do imunizante da Pfizer/BioNTech para vacinação de crianças de 5 a 11 anos contra a Covid-19, no dia 16/12/2021. No dia 20/01/2022, a Anvisa aprovou o uso emergencial da vacina CoronaVac em crianças e adolescentes na faixa de 6 a 17 anos. O Brasil iniciou a vacinação da faixa etária de 5-11 anos apenas no dia 14/01/2022, cerca de 30 dias após a aprovação da vacina da Pfizer pela Anvisa. Mesmo com o legado extraordinário do Programa Nacional de Imunização (PNI), que permite que o Brasil possa vacinar tranquilamente muito mais de 1 milhão de pessoas por dia, o país vacinou, até o dia 21/02/2022, aproximadamente 7,5 milhões de crianças de 5-11 anos, o que corresponde a 36,4% do total nessa faixa etária, no período de 39 dias. É muito pouco!
Se tivéssemos campanhas oficiais de conscientização e esclarecimento de pais e responsáveis por parte do MS, defendendo a importância da vacinação para a proteção de crianças, nós poderíamos ter vacinado mais de 95% das crianças nesse período. Mas ao contrário do que esperávamos de um órgão que historicamente sempre defendeu a vacinação e medidas sanitárias para a proteção de nossa população, o atual MS trabalha contra. Justamente quem deveria defender a vacinação e assumindo o protagonismo de combater fake News, faz campanha antivacinismo infantil. Por isso, temos essa baixa adesão.
Episódios de sabotagens à vacinação contra a Covid-19 no Brasil
São muitas as razões para os baixos níveis de vacinação infantil até o momento. Nós nunca tivemos uma campanha nos veículos de comunicação em massa e nas várias mídias, defendendo a vacinação infantil protagonizada pelo MS. Estratégias de comunicação em massa, com informações claras e objetivas têm um papel fundamental e deveriam ser uma política de Estado. Mas infelizmente, hoje estamos expostos a uma política de governo anticiência e o Brasil vive uma séria crise de gestão. Os negacionistas estão ocupando muito espaço nas redes sociais, espalhando a praga da desinformação, que mata.
Não podemos esquecer que em virtude da negligência no combate a pandemia por parte do Governo Federal e da falta de acesso a dados de óbitos oficiais, um consórcio de imprensa foi formado no início da pandemia por veículos de comunicação para levar informações corretas para a população brasileira. Desde o suposto ataque hacker ao site do MS no início de dezembro de 2021, a população brasileira também não teve acesso aos números atualizados de óbitos por faixa etária e aos indicadores epidemiológicos.
Desde o início da pandemia, autoridades ligadas ao governo federal promoveram tratamentos ineficazes, depois ignoraram a aprovação da vacina da Pfizer pela Anvisa, demoraram para comprar as vacinas pediátricas e alimentaram teorias da conspiração de que as vacinas não são seguras. Eles ainda questionam sua eficácia e segurança e defendem a farsa do kit Covid, contendo hidroxicloroquina, ivermectina, cloroquina e azitromicina para tratamento precoce — medicamentos ineficazes com grande potencial de gerar efeitos adversos. Eles também defendem a trapaça irresponsável do uso de ozonioterapia no combate a Covid.
Não fosse a pressão de vários setores organizados da sociedade, incluindo as sociedades científicas, médicas e a imprensa brasileira, além de questões políticas para evitar um protagonismo maior do governador do Estado de São Paulo na campanha de vacinação contra a Covid, a situação seria ainda pior. Conseguimos combater muitos dos embustes criados pelo movimento antivacinas, mas é difícil lutar contra a desinformação proveniente de membros dos órgãos oficiais do Palácio do Planalto, como o MS.
O Brasil teve vários problemas na logística e distribuição das vacinas e é um solo fértil para o espalhamento de outro vírus, o das fake News. Sabemos que desde o início da pandemia, faltam campanhas nacionais de incentivo à vacinação e esclarecimento da população brasileira por parte do MS, pois a imunização nunca foi prioridade do governo federal. Temos o Presidente da República e Ministros de Estado recomendando diretrizes de caráter ideológico, em episódios irresponsáveis que atentam contra a saúde da população brasileira. Assim que a Anvisa aprovou a vacina pediátrica da Pfizer, o Presidente da República ameaçou divulgar os nomes dos técnicos da Anvisa que aprovaram o imunizante. O Chefe do Executivo também afirmou recentemente que o número de mortes de crianças pela Covid-19 é insignificante no Brasil, que vacinas transmitiam o vírus HIV e sugeriu aos pais conversar com “seus vizinhos” para decidir pela vacinação ou não de seus filhos. O atual Ministro da Saúde disse que “os óbitos de crianças estão dentro de um patamar que não implica em decisões emergenciais” e mentiu ao afirmar que havia cerca de 4 mil óbitos com comprovação de relação causal com a aplicação das vacinas contra a Covid-19. O próprio levantamento do MS não mostra mortes causadas pelas vacinas entre os milhões de brasileiros vacinados.
Tivemos que lidar com medidas de caráter oficial, como a audiência pública para discutir a vacinação para crianças de 5-11 anos, organizada pelo MS no dia 04/01/2022, que colocou em pé de igualdade, cientistas e médicos respeitados, com charlatães que são contra a ciência, contra as evidências científicas e que defendem uma bandeira política antivacinas. Não se pode colocar no mesmo palco profissionais sérios com picaretas que só espalham teorias da conspiração. Não se dá espaço no debate para definição de políticas públicas a médicos e pseudocientistas que não honram o diploma e hoje estão nas fileiras dos antivacinas. Esses indivíduos não podem ter oportunidade para espalhar o vírus das mentiras assassinas em eventos oficiais, de promover falácias sobre medicamentos que não são eficazes, ao mesmo tempo em que mentem descaradamente sobre eficácia e segurança das vacinas e defendem ozonioterapia no combate a Covid. Como eles podem atacar as vacinas contra uma doença que já matou cerca de 6 milhões de pessoas no mundo, sendo quase 645 mil no Brasil? Essa audiência pública inédita e desnecessária serviu ao propósito de assustar os pais e responsáveis pelas crianças. Depois desse espetáculo deprimente, no dia 05/01/2022, o MS decidiu que a vacinação infantil não seria obrigatória e que os pais deveriam assinar um termo de consentimento autorizando a vacinação de seus filhos.
As vacinas pediátricas deveriam ser incorporadas ao PNI, onde entrariam no calendário básico de vacinação das crianças e seriam consideradas obrigatórias. Para evitar a obrigatoriedade, o MS incluiu as vacinas apenas no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 (PNO). Com essa medida, o Ministério defende que não fere o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), onde consta que a vacinação seria obrigatória quando recomendada pelas autoridades sanitárias. Segundo o ECA, toda criança brasileira tem direito à saúde e a vacinas que salvam vidas.
Outro episódio lamentável foi a medida do Disque denúncia antivacinas, criada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), que divulgou nota técnica contra a criação do passaporte vacinal e contra a obrigatoriedade da vacinação infantil contra a Covid-19. Foi necessário o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), proibir a ampliação do escopo do Disque 100, “fora de suas finalidades institucionais”, para impedir o canal de receber queixas de pessoas contrárias às vacinas. Usar o MMFDH para criar essa nota técnica foi mais um retrocesso e uma aberração que atenta contra a saúde da população brasileira. É uma diretriz de caráter ideológico e mais um episódio lamentável de negação da ciência. Não podemos admitir ações do governo federal para atrasar e atrapalhar a vacinação de nossas crianças.
No dia 20/01/2022, dois Ministros de Estado usaram dinheiro público para buscar benefícios políticos e eleitorais ao visitarem a família de uma criança em Lençóis Paulista, na tentativa de vincular o efeito adverso da criança com a vacina. O próprio Presidente ligou para a família, segundo noticiou a imprensa. Foi comprovado que a criança possuía uma doença congênita, que não teve nenhuma relação com a vacina. Eles tentaram passar a ideia de que o problema enfrentado pela criança foi uma reação à vacinação contra a Covid. Esse é o sonho de consumo deles, que uma criança morra com relação causal com uma das vacinas. As autoridades do Palácio do Planalto não visitaram ou fizeram ligações para nenhuma família das cerca de 2. 842 crianças e adolescentes que comprovadamente morreram em virtude da Covid-19.
A nota técnica no. 2/2022, assinada pelo Secretário de Ciência e Tecnologia do MS publicada no Diário Oficial da União de 21 de janeiro de 2022, rejeitou as conclusões do Grupo de Trabalho instituído pelo próprio MS, aprovadas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) no SUS. A comissão científica mostrou que os medicamentos favoritos do governo federal, cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina não funcionam contra Covid. Esses especialistas representaram sociedades científicas e elaboraram diretrizes para o tratamento da Covid-19, pautadas no conhecimento científico sólido e bem fundamentado nas melhores informações e recomendações internacionalmente aceitas. Mas o secretário recusou as evidências científicas e desvirtuou a nota dizendo que a cloroquina era segura e eficaz contra a Covid-19 e as vacinas não. Surreal!
O Senado Federal sediou no dia 14/02/2022, uma sessão de pesadelo com desfile de mentiras e muita desinformação sobre as vacinas contra a Covid-19. Alguns políticos e médicos anticiência, afirmaram, sem apresentar qualquer evidência científica, que as vacinas contra a Covid-19 podem causar câncer. Eles também divulgaram informações falsas, sem comprovação científica, colocando em dúvida a eficácia e a segurança das vacinas contra a Covid-19. Foi mais um show de horrores e de trapaças promovido à luz do dia, para agradar as bases negacionistas, com a participação de alguns dos maiores mentirosos do país, que espalham fake News e mentiras assassinas impunemente. Mais um enorme desserviço para a saúde e segurança da população brasileira, tudo em nome da liberdade de expressão.
Os efeitos provocados pelos antivacinas
Os covardes antivacinas, que incluem alguns políticos, jornalistas, médicos, líderes religiosos e pseudocientistas, estão enganando e assustando a população, defendendo uma bandeira política anticiência. É preciso combatê-los! Não podemos admitir pessoas morrendo por Covid-19, tendo vacinas seguras e eficazes que podem evitar formas graves da doença, hospitalizações e óbitos. Temos que repudiar com veemência a atitude de profissionais de saúde que se aproveitam da credibilidade de sua profissão para disseminar de forma leviana, notícias sem qualquer base científica, com objetivo de desestimular a vacinação de crianças.
Nunca precisamos do judiciário para obrigar pais a vacinarem seus filhos. O que, realmente, precisamos é de políticas públicas para romper a cadeia de transmissão da doença, como testagem em massa, uso de máscaras de boa qualidade (PFF2/N95, KN95) e de campanhas informativas para a população respeitar as medidas não-farmacológicas.
Precisamos vacinar mais rapidamente a população e todos - com 18 anos de idade ou mais - devem tomar as duas doses e a dose de reforço. Até o momento, a dose de reforço foi aplicada em apenas 37,53% da população com 18 anos de idade ou mais. Precisamos vacinar nossas crianças e evitar que uma variante de preocupação mais perigosa possa surgir entre as crianças não vacinadas. Sabemos que o vírus sofre menos mutações em pessoas vacinadas, que a capacidade evolutiva do vírus é menor em pessoas vacinadas, que elas se recuperam mais rapidamente e ficam menos tempo com o vírus.
Hoje nós temos um leque de boas vacinas, seguras e efetivas contra a Covid-19, mas infelizmente não temos vacinas contra o vírus da desinformação e das fake News, tampouco contra a ignorância e a estupidez humana. É urgente derrotar o discurso negacionista antivacinas, que mata.
A cobertura vacinal infantil deve aumentar
A Covid-19 mata mais que todas as outras doenças preveníveis por vacinas e o impacto não se resume à fase aguda da doença. Crianças podem ser infectadas pelo vírus, podem precisar de hospitalização, ter casos de síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P) pós-covid, podem apresentar Covid longa com persistência dos sintomas por mais de 8 semanas depois da recuperação da infecção, podem ter transtornos psiquiátricos e sequelas respiratórias, neurológicas e cardiovasculares irreversíveis por toda a vida, podem transmitir o vírus para outras pessoas com comorbidades que moram no mesmo lar. Crianças podem morrer!
Temos que fazer o mapeamento das crianças não vacinadas e realizar busca ativa e planejar campanhas de vacinação nas escolas. Apesar de todas as notícias mentirosas, as pessoas estão sedimentando confiança nas vacinas. As evidências científicas das vantagens da vacinação são muito robustas. A partir do momento em que mais e mais crianças forem vacinadas, que os pais indecisos observarem os benefícios e que de fato não estão ocorrendo eventos adversos graves e nem óbitos nas crianças vacinadas, as taxas de cobertura vacinal infantil devem aumentar. Os pais estão protegidos com as vacinas, agora precisam proteger seus filhos.
Aqueles que não levaram seus filhos para se vacinar porque foram infectados pela ômicron tem que esperar o período da quarentena. Muitas crianças também foram infectadas nesse período e devem esperar pelo menos 30 dias após a infecção para serem vacinadas.
Em um país tão desigual, já são muitas as dificuldades de acesso às políticas públicas na área de saúde por parte das populações mais vulneráveis. Toda essa onda gigantesca de fake News trouxe consequências irreparáveis. Mesmo assim, as vacinas estão mostrando sua importância fundamental e estão cumprindo muito bem o seu papel. Mas a baixa adesão à dose de reforço e à vacinação infantil podem trazer riscos e comprometer o combate à pandemia. Vacinar-se é um dever sanitário e um ato de cidadania e resistência.
(*) Luiz Carlos Dias é Professor Titular do Instituto de Química da Unicamp, membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico e membro da Força-Tarefa da UNICAMP no combate à Covid-19.