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A “flânerie” linguística

Marcelo Módolo e Henrique Braga (*) | 02/05/2022 08:30

“Casar-se”, “maquiar-se”, “arrepender-se” e tantos outros verbos na língua portuguesa são utilizados como verbos reflexivos, dada a presença do pronome que retoma o próprio sujeito. Em certas variedades do português brasileiro (PB), contudo, acusa-se a supressão do pronome: em variedades de Minas Gerais e Goiás, os tais pronomes reflexivos parecem não ser mais tão requeridos pelo falante, conforme relatos e pesquisas. Alguns colegas dizem que em Minas Gerais todo mundo “reúne” (e não “se reúne”) para tratar de questões de trabalho ou para tomar um café, e os alunos “formam” na faculdade (em vez de “se formarem”), a cada semestre, sem maiores problemas.

Parece-nos, entretanto, que não é somente nesses falares que os reflexivos andam sumidos. Em um passeio pelo Parque Villa-Lobos, localizado na zona oeste da capital paulista, encontramos este prudente enunciado em uma tabela de basquete: PROIBIDO PENDURAR NA CESTA.

Conversa de “basqueteiro”

Para os que têm algum conhecimento das regras do basquete, sabe-se que os jogadores profissionais têm por hábito se pendurarem na cesta, após marcarem ponto. As regras permitem essa conduta, evitando que o jogador caia sobre outro atleta e cause acidente maior – embora, na prática, o gesto por vezes se limite a uma maneira de demonstrar força física e provocar o adversário.

Por esse motivo, uma segunda interpretação para o verbo pendurar – como algo que deve ser suspenso e fixado na cesta – é descartada neste contexto. O conhecimento linguístico e o conhecimento de mundo ativados durante a leitura desses dizeres se juntam para a composição de um significado único, ou seja, pede-se que o jogador não se pendure na cesta após marcar ponto.

O pronome trambolho

Em um livrinho antigo, mas ainda lido com proveito, Fonética sintática, o carioca Sousa da Silveira afirma que há bom número de verbos que, até na língua literária, aparecem ora com a forma ativa absoluta, ora com a forma reflexa. A presença desses verbos sem o pronome é igualmente antiga na língua portuguesa, como mostram alguns exemplos transcritos pelo ilustre professor: “Somente estriba no segundo engano (Camões, Lusíadas, I, 93); R como uma planta já crescida, curvou e chegou ao chão: o minúsculo, o pequeno indica essa tendência. (João de Deus, Cartilha, 110); Diga-me uma coisa: sua irmã? Está em Coimbra, casou (Eça de Queiroz, O Crime do Padre Amaro, 56); Entramos e enfiamos por um caminho entre campas (Machado de Assis, Memorial de Aires, 6)”.

Provavelmente houve a manutenção desses verbos sem o pronome em Minas e Goiás, mas, seguramente, essa manutenção não é exclusividade dessas duas variedades.

O “desgaste” semântico do “se”

Tem ocorrido um esvaziamento de sentido do pronome “se”, que vai se tornando cada vez mais opaco, deixando, assim, a sua função primeira de estabelecer correferencialidade entre o sujeito e objeto. Desse modo, o falante, por economia linguística, acaba por apagá-lo ou elidi-lo das suas produções linguageiras.

Assim a flânerie linguística também nos põe para pensar, questionar o estágio do nosso português. O ato de caminhar pela cidade, mesmo com alguma pressa para chegar de um lugar ao outro, permite observar não apenas a paisagem urbana, mas também suas falas e placas, com todas as contribuições vernaculares de usuários da língua.

(*) Marcelo Módolo é professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

(*) Henrique Braga é doutor pela FFLCH/USP.

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