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A potência de uma voz negra feminina

Karoline Costa (*) | 19/11/2021 13:10

Eu não me via na TV. Nos telejornais, eu não me via na bancada, sem protagonismo para a mulher preta. A falta de referência não me deixava imaginar que hoje eu seria uma graduanda em jornalismo a dois semestres de distância da formatura. Começos são difíceis, têm a adaptação com a vida, a ruptura da antiga rotina, e eu saí de uma cidade chamada Butiá, com pouco mais de 22 mil habitantes, a 84,1 km de Porto Alegre, para justamente desembarcar no Campus Saúde da UFRGS, mais precisamente na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, que logo aprendi a chamar de Fabico.

Pergunte a uma menina preta de 17 anos que mora no interior e nunca pisou em uma federal se ela se imagina se formando com menos de 25 anos em jornalismo. Eu nunca tive a audácia de me perguntar isso, pois era uma realidade tão distante que me faltava imaginação para formular tal questionamento.

Eis a resposta da pergunta que nunca me fiz: eu vou me formar em jornalismo com menos de 25 anos em uma universidade federal. Mas isso vai muito além da pergunta e da resposta, pois o que encontrei dentro da academia foi um mundo de possibilidades.

O jornalismo me permitiu ser e estar em lugares jamais antes imaginados por esta (quase) jornalista que vos escreve. Narrar histórias reais é o que tanto me fascina nessa profissão.

O estágio obrigatório realizado no Jornal da Universidade, em 2019, aconteceu como uma alternativa. Eu ainda estava cursando o terceiro semestre quando me candidatei a uma vaga de bolsista; no entanto, eu precisaria ter concluído as disciplinas desse semestre para obter os créditos necessários para disputar tal vaga. Surge, então, a possibilidade de entrar no JU como estagiária, e foi o que aconteceu.

Quando eu entrei no JU – à época mensal e impresso, mas em processo de convergência para outras mídias, como as redes sociais –, encontrei espaço para explorar ao máximo a sensibilidade jornalística dentro de mim. Diferente de outros estágios que eu poderia ter feito em veículos com notícias e matérias diárias – o que chamamos no jargão jornalístico de hard news –, no Jornal da Universidade, por ser mensal, havia a possibilidade de uma conexão mais longa com as pautas – o chamado slow news –, o que para uma estudante sem experiência em redação funcionou como um grande aprendizado.

O conhecido dito popular a primeira vez a gente nunca esquece se concretiza para mim depois da publicação da minha primeira reportagem no JU: o perfil do professor de Botânica Sergio Leite. Foi um desafio fazer o perfil de um professor com tantas histórias para contar e tamanha intimidade com a Universidade. Mas tão desafiador quanto selecionar o que eu considerava importante de pouco mais de três horas de entrevista – ou conversa – foi pesar o que era mais relevante.

O que importa mais é uma constante dúvida – enquanto escrevo esse artigo, seleciono as palavras que se sucedem. As escolhas são as presenças, as visualidades, mas também são as ausências, as invisibilidades.

Sair da minha zona de conforto e parar em um curso de Design ministrado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS pelo professor convidado da Universidade de São Paulo (USP) Marcos da Costa Braga foi, sem dúvida, um dos maiores desafios ao longo do meu percurso no JU. A entrevista foi desafiadora por causa do meu distanciamento em relação ao tema e de não ter um conhecimento prévio sobre design. Ainda assim foi igualmente instigante aprender um novo assunto.

Assuntos caros para mim são ao mesmo tempo mais difíceis e mais apaixonantes de escrever. Difíceis porque são temas que me tocam profundamente e que são sensíveis à sociedade. E apaixonantes porque são temas necessários e histórias das quais podemos tirar reflexões, mesmo sendo uma ferida aberta em nosso país, como, por exemplo, o racismo. Já como bolsista do JU, tive a oportunidade de entrevistar o professor e escritor Jeferson Tenório, um dos primeiros cotistas formados pela UFRGS. Depois do assassinato de George Floyd e com a onda de protestos antirracistas se espalhando pelos Estados Unidos, Europa e chegando aqui no Brasil, a entrevista se baseou na reflexão do professor sobre o racismo impiedoso e genocida que continua apagando nossa subjetividade e matando nossos corpos.

Outra reportagem que me afetou especialmente foi contar sobre a ação de extensão que deu visibilidade para as estudantes negras da Universidade. O projeto das Meninas na Ciência, muito mais do que trazer os dados da presença dessas estudantes – e me incluo nessa pesquisa, como respondente –, trouxe o rosto delas, as histórias, as perspectivas de uma maior presença negra feminina em todas as áreas, pois, sim, somos minoria em todas as áreas.

Deixo pro final – contrariando os critérios de noticiabilidade aprendidos na faculdade – o que considero mais importante: eu fui a primeira estudante negra do Jornal da Universidade.

Essa notícia caiu no meu colo depois de uma ligação do editor-chefe, Everton Cardoso. Em um primeiro momento comemorei, afinal fui pioneira no Jornal, a primeira bolsista negra depois de duas décadas de existência do JU. Mas logo em seguida veio a reflexão: quantas mulheres negras jornalistas passaram pela Fabico e não tiveram a chance – por inúmeras razões – de fazer parte da história do JU? De trazer o olhar de quem está na base da pirâmide social e consegue enxergar opressões e vivências que quem está acima na escala de opressão? Perco-me nesse pensamento.

A primeira lição que aprendi no curso de Jornalismo foi a objetividade. O jornalista trabalha com objetividade nas suas produções, mas o que eu aprendi ao longo do curso e do trabalho que realizei no Jornal da Universidade foi que objetividade não é sinônimo de distanciamento. Em tempos em que a distância é necessária, nunca se fez tão urgente a proximidade. O que seria objetividade senão o jornalista se aproximar do tema e das histórias contadas a ponto de narrá-las o mais próximo da realidade.

Agora eu me vejo na TV, nas bancadas dos telejornais. Me vejo na Universidade – mesmo nos cursos em que estou em menor número estou presente. Me vejo no Jornal da Universidade. Me vejo na Câmara Municipal. Muitas que vieram antes de mim gritaram e não foram ouvidas, lutaram e não tiveram a oportunidade de tentar estar presentes em lugares de destaque. Mas hoje, ainda que abafada pelo silenciamento, eu ouço a potência da voz negra feminina.

(*) Karoline Costa é graduanda do 6.° semestre de Jornalismo. Atualmente é bolsista voluntária de iniciação científica da pesquisa “Ser mulher e ser pesquisadora no campo da Comunicação: entre papéis sociais e desigualdades na esfera do trabalho e da produtividade acadêmica”.

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