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Aprender e dançar de frente para o caos

Gustavo Monteiro Tessler (*) | 29/10/2021 08:30

Um dia desses acordo e me deparo com uma mensagem de meu professor orientador. Se tratava de uma publicação do Instagram do Museu do Trabalho. Na imagem, a fotografia de um pôster apresentando a dançarina de flamenco Carmen Amaya – dando a impressão de realizar um movimento forte – em composição com a frase da escritora Alice Walker: “Tempos difíceis pedem danças furiosas”.

Sem dúvida, os tempos estão difíceis. Tem sido um exercício constante parar em meio a tudo que vivemos e pensar: afinal, o que tem nos movido? As perspectivas que nos cercam são muito incertas e às vezes nos fazem questionar até se de fato existem. Na vida relativamente recente de pesquisador – tendo ingressado no Programa de Pós-graduação em Educação já durante a pandemia de covid-19 –, tem se mostrado cada vez mais importante entender que pesquisa e vida se fazem em associação, em sintonia, e não uma a serviço da outra. Volta e meia isso nos faz pensar que tudo, absolutamente tudo pode ter relação com nossas pesquisas. Não que desejamos abraçar o mundo, o todo – tarefa impossível e insuficiente ao mesmo tempo –, mas é que de alguma forma tudo acaba se afetando, entrando em arranjo.

Atualmente vemos muitas pessoas afirmarem que estamos vivendo em meio ao caos. É bem possível que, ao abrir uma rede social agora mesmo, encontremos uma postagem de alguém falando sobre o caos que tem vivido ou dando uma dica de como encontrar “paz em meio ao caos”. Evidentemente não podemos minimizar nenhuma das dificuldades que enfrentamos hoje. Com crises sanitária, institucional e financeira, com políticas que parecem ir na contramão das necessidades, e mais uma série de incontáveis coisas que nos abalam, viver pode parecer com algo violentamente caótico.

Um exercício que podemos fazer é o de pensar que caos é esse a que nos referimos: será que ele é exclusividade destes tempos? Será que tudo o que ele faz é nos imobilizar?

Em relação ao caos, o escritor inglês D.H. Lawrence (1885-1930) escreveu algumas linhas que os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, no último capítulo de sua última obra conjunta (O que é a filosofia?, de 1991), definiram como violentamente poéticas. Em Caos em poesia, Lawrence sugere que as opiniões e os clichês acabam por construir um guarda-sol sobre a humanidade, escondendo dela o caos e lhe conferindo a forma do firmamento. Em suma, uma ilusão, uma fuga do caos. O autor sugere, então, que o trabalho da poesia é justamente o de rasgar esse guarda-sol e deixar que exista um fluxo, um sopro de caos na humanidade. De alguma maneira, pois, a única forma de vencermos o caos é o enfrentando.

Deleuze e Guattari partem dessa afirmação para sugerir que não só a poesia, mas as diferentes formas de pensamento e de criação partem do caos para que os planos inventivos sejam traçados. Assim, esses autores sugerem que a arte mergulha no caos para organizar suas linhas com sensações; a ciência lógica volta desse mergulho com funções e operações; já a filosofia parte das infinitas velocidades do caos para inventar seus conceitos. É, portanto, produzida uma realidade em que se corta o caos e a partir dele se produz um cosmo.

Trabalhando com as intensidades desse pensamento, ao articular aprendizagem, arte e invenção, Virgínia Kastrup (Instituto de Psicologia – UFRJ) sugere que o papel da docência é justamente o de ser um atrator em meio ao caos. A professora busca em alianças na física a noção do atrator caótico: um lampejo, um ponto de desequilíbrio em um sistema, de onde emerge uma singularidade em meio às múltiplas possibilidades (noção que também aparece na obra de Deleuze e Guattari).

Para Kastrup, o professor enquanto atrator se distancia da transmissão de um certo saber, que deveria ser absorvido ou assimilado por quem aprende. Ao deslocar a figura do professor do centro desse processo, a autora sugere que pensemos a docência como um movimento que produz dúvidas e agita encontros nos quais a aprendizagem pode ser colocada no plano da invenção. Assim, pensamos uma docência que se dá muito mais nas companhias, no fazer junto, que nos modelos a serem seguidos.

Enquanto desenvolvo uma pesquisa que visa justamente operar com aprendizagens produzidas ao longo da formação docente em um plano de composição com invenções e danças, penso no que temos condição de criar – e aprender, e dançar – quando não nos escondemos do caos. Quando o encaramos de frente e tentamos puxar suas linhas infinitas, buscando alguma ordem para nossas composições – pois o caos é muito mais que a confusão, a desordem e a angústia.

O caos é justamente onde todas as possibilidades correm incontroláveis. Necessitamos, pois, criar estratégias para dominar as ideias, organizá-las e produzir um plano no qual a vida seja possível.

Nessas de não separar a pesquisa das outras esferas da vida, às vezes vamos compondo aprendizagens com atratores caóticos que encontramos por aí em nossas danças e andanças. Ou mesmo em nossas trocas de mensagens, navegações virtuais, encontros ao acaso – mesmo quando aquilo que escapa do caos em nossa direção nos exija uma dança furiosa. Inventemos. Com a fúria que nos for exigida, sem perdermos a consciência que precisamos ter. Mas não podemos deixar as invenções de lado. Tempos difíceis pedem, sim, danças furiosas.

(*) Gustavo Monteiro Tessler é mestrando no Programa de Pós-graduação em Educação da UFRGS na linha de pesquisa Arte, Linguagem e Currículo e licenciado em Geografia também pela UFRGS.

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