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As letras indigestas

Ana Lúcia Liberato Tettamanzy (*) | 19/12/2020 09:21

Ainda o analfabetismo

Quem quer e quem pode escrever Literatura no Brasil? A Literatura é um direito humano? A desigualdade social e a iniquidade no acesso à educação e aos bens da cultura continuam restringindo as autorias e visões de mundo partilhadas pelo ato estético?

Sem a pretensão de responder de forma acabada a essas amplas questões, trago um trajeto que ensaia compreensões e sinaliza para desafiadoras transformações trazidas das margens para o centro. Sob a inspiração moderna de desenvolver os brasis e salvar as populações de sua existência pouco ilustrada, o século XX impôs a missão de distribuir livros “a mancheias” e, com isso, eliminar traços persistentes de barbarias e atavismos como os representados pelo líder messiânico Antônio Conselheiro ou pelo caipira Jeca Tatu. Sob os modernistas, havia a expectativa de “descobrir” as culturas populares e fomentar o registro e a salvaguarda do patrimônio nacional. Havia ainda a intenção de que um dia a massa pudesse digerir “o biscoito fino” que os intelectuais fabricavam. Com a industrialização e o progressivo abandono do mundo rural, teria ocorrido a passagem direta do analfabetismo para a cultura de massa, sem a devida consolidação de um público leitor. Mais adiante, alterações nos currículos e metodologias enfraqueceram a formação tida como clássica ou humanista em favor da profissionalização precoce e do tecnicismo.

Eliminar o analfabetismo não seria tarefa de um século só, menos ainda permitir o acesso de amplas e diversas camadas de estudantes às universidades. Apesar das mudanças desde o final do século XX, como a reinserção de disciplinas do campo das ciências humanas e sociais, o foco em múltiplos letramentos e em metodologias que estimulam a construção de conhecimentos, a inclusão e a diversidade, a escola segue passível de silenciamentos e invisibilização pelos regimes de verdade que ainda preserva. Por outro lado, sobretudo em contextos sociais em que o vínculo com as comunidades se faz mais efetivo, a escola por vezes se faz espaço de sonhos e projetos de sociedade outros.

De leitores improváveis a autores

Outro dado da equação sobre o acesso às letras neste país diz respeito ao repertório de leituras. Um dos sintomas do fracasso do letramento está no desempenho abaixo do razoável nos testes que avaliam estudantes do ensino fundamental e do médio em disciplinas como português e matemática. Se são gastos milhões em livros didáticos que cobrem o território nacional, o formato e as práticas nem sempre favorecem a experiência com a leitura emancipadora. E literatura, teatro, cinema e museus constituem experiências estéticas infelizmente ainda inacessíveis a boa parte da população, mesmo a muitos professores, de modo que seguem constituindo fatores de distinção para os que as possuem e, consequentemente, de segregação e violência simbólica para os que delas seguem apartados.

Em paralelo, autorias e práticas de produção cultural insurgentes vêm demarcando territórios nos sistemas das artes e da literatura, herdeiras, em parte, de modelos de criação coletivos e tradicionais que as dinâmicas da voz e da performance mantiveram ativos. As poéticas orais ameríndias e negras, assim como repente, cordel e gêneros performáticos associados a rituais e celebrações festivo-religiosas, são revisitadas. Interpretadas como lugares sociais de “carências”, as periferias reinventam espaços como bares para fomentar poesia, literatura, encontro e escuta. Em vez de armas ou bebidas, a partilha do estético, que também pode ser ato político. A rua e o espaço público, inclusive em áreas centrais das cidades, acolhem públicos que encenam batalhas de hip-hop e competições de slam (poesia oral). Nesses eventos performáticos, com públicos predominantemente jovens e temáticas antirracistas, feministas e populares/periféricas, o subalternizado cria um sistema à parte do canônico e do institucional. Multiplicam-se, assim, espaços autônomos organizados com meios independentes de divulgação (redes como Facebook, Instagram, Youtube), de fomento colaborativo (realização de feiras, vendas de zines, materiais gráficos, camisetas) e de circulação (editoras e eventos culturais alternativos, vídeos na internet, venda direta aos leitores).

“Eu não sou seu negro”

Assim como o fenômeno dos saraus e da poesia do slam passou a receber atenção acadêmica e ocupar espaços simbólicos para além de sua geografia, colocando a periferia como centro, autores com distintos pertencimentos e perfis alternativos passam a ser publicados por grandes casas editoriais e inseridos no mercado livreiro massivo. Tal fato não implica para esses grupos o abandono das editoras, livrarias e eventos menores, em que a bibliodiversidade propõe outra cultura livresca. A concomitância de mundos e perspectivas pode ser observada na recente inserção de dois jovens autores porto-alegrenses no sistema das letras.

Jeferson Tenório, professor e atualmente doutorando em Teoria Literária, desde o primeiro romance (em 2013) publicou em editoras comerciais (duas editoras gaúchas e uma, a mais recente, paulista).  Este ano se tornou o primeiro patrono negro da Feira do Livro da cidade, em sua 66.ª edição, fato que, se evidencia uma resposta institucional a incisivas críticas em anos anteriores pela pouca diversidade e representatividade na programação, também valida a qualidade e relevância da obra. Situações como essa não se limitam a Porto Alegre, obviamente, basta lembrar debates envolvendo curadorias e seleções de convidados em feiras literárias famosas como a Flip, em Parati/RJ. Recentemente lançado como colunista em caderno de cultura de conhecido jornal gaúcho, já no primeiro texto (em 9 de dezembro) Tenório mostra a que veio: com o provocativo título “Eu não sou seu negro”, alusivo ao documentário baseado na obra do intelectual e ativista estadunidense James Baldwin, defende, perante os leitores (e perante uma sociedade racista), o direito de ter sua humanidade e sua liberdade de escrita reconhecidas.

Depois de inúmeras recusas, José Falero teve sua primeira obra, um livro de contos, publicada em 2019 por uma editora independente de Belo Horizonte, direcionada para autorias populares e periféricas, coletivas ou individuais. Autodidata e aluno da EJA, Falero, como Tenório, esse ano também obteve crescente reconhecimento. Seu primeiro romance foi lançado por editora paulista. Em suas manifestações em entrevistas, igualmente reivindica o direito à escrita, sem deixar de invocar o incômodo pelo fato de experiências opressivas da escola e da sociedade negarem a seus pares, os moradores de periferias, entre tantas outras coisas, os papéis de intelectuais ou artistas. Assim antecipa a leitores letrados, de classes sociais hegemônicas, que sua literatura pode ser indigesta (desabafo incontido sobre a realidade que a maioria não quer conhecer, apresentada em sua complexidade e sem exotismos).

Indigestas e de renovadas ética e estética, as diversas criações e autorias que a cena contemporânea propicia exigem que as teorias e aparatos críticos disponíveis se modifiquem e, por vezes, que os públicos se calem para escutar tanto as vozes livres como a falta de ar.

(*) Ana Lúcia Liberato Tettamanzy é professora de Literatura do Instituto de Letras e do Programa de Pós-graduação em Letras da UFRGS.

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