Cabe à escola formar atletas?
A cada edição dos jogos olímpicos somos acometidos de sentimentos ambíguos. Em que pese o fato de festejarmos o desempenho de atletas das mais variadas modalidades, as demais circunstâncias não deixam dúvidas que o pódio, na maior parte dos casos, depende da abnegação pessoal ou familiar. As poucas vitórias e as raras medalhas são comumente acompanhadas de narrativas de sofrimento e dedicação que amplificam a façanha de quem triunfou. Para justificar o lugar ocupado na classificação geral, surgem os culpados de sempre: falta de incentivo ao esporte, péssimas condições de treinamento, desvios dos parcos recursos e inexistência de um programa estatal de longo prazo.
Outro fenômeno que reincide ao final do ciclo olímpico é a alusão ao papel que a escola poderia exercer nesse processo e, mais especificamente, a Educação Física. Sempre há quem defenda que a instituição educativa se torne um celeiro de atletas e o professor ou professora alguém que simultaneamente proporcione uma base esportiva geral, a fim de granjear futuros talentos. No imaginário dos incautos essa é a fórmula do sucesso. Cogitam-na como projeto executável, não fosse o desinteresse das autoridades refletido na ausência de investimentos.
Para desmontar esse raciocínio, repetimos mais uma vez e de novo que o sistema esportivo não tem relação com o educacional, e que embora seja desejável estruturar as escolas com quadras, ginásios, piscinas, pistas e todos os equipamentos necessários, além de bem remunerar seus profissionais, isso não melhorará os resultados nas competições esportivas internacionais. É verdade que a maioria das crianças estabelece um primeiro contato com o esporte nesse ambiente, mas isso é muito diferente de responsabilizar a escola pela formação de atletas. Ao contrário do que se pensa, esse jamais foi o objetivo do ensino da Educação Física. Ainda que o Decreto nº 69.450/1971 tenha imposto a “iniciação desportiva” a partir da antiga 5ª série do 1º grau e a criação das associações atléticas no ensino superior, o intuito era “desenvolver e aprimorar forças físicas, morais, cívicas, psíquicas e sociais”. Em outras palavras, melhorar a aptidão física.
Cinco décadas depois, o acúmulo de conhecimentos resultantes das pesquisas sobre o tema reposiciona o ensino da Educação Física. Observa-se uma profunda mudança paradigmática com reflexos concretos nos documentos curriculares oficiais e nas práticas escolares. Importante dizer que essa transformação tinha como cenário a redemocratização da sociedade, o que levou à defesa inconteste de uma escola para todos e todas. A Educação Física abandonou o antigo caráter excludente em decorrência da ênfase na performance motora, para assumir o lugar destinado às demais disciplinas na formação plena de cidadãos e cidadãs. Desvencilhou-se de uma epistemologia baseada na psicobiologia e incorporou os conhecimentos advindos das ciências humanas, com destaque para a sociologia, filosofia, antropologia e, mais recentemente, os estudos culturais na sua vertente pós-estruturalista.
Esse processo deslocou a Educação Física da anterior condição de mera “atividade” para situá-la como componente curricular inserido na área das Linguagens. Nesses termos, as práticas corporais, quais sejam, as brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas, são compreendidas como textos da cultura produzidos pela linguagem corporal, passíveis, portanto, de infinitas leituras, ressignificações e reelaborações. Na qualidade de artefatos, essas manifestações carregam os signos dos grupos que as criaram e recriaram ao longo do tempo, o que enseja concebê-las como traços da identidade cultural. Identidade que se move a depender da correlação de forças que operam no tecido social.
Tomemos o futebol como exemplo. Tendo surgido nos colégios da elite inglesa como dispositivo de disciplinamento dos jovens, permaneceu privativo desse segmento até popularizar-se e, mais adiante, profissionalizar-se (para alguns seria o contrário). Seu regramento sofreu alterações e, conforme o grupo praticante, inventaram-se técnicas e táticas, ao passo que outras desapareceram. No Brasil, apenas em 1979 as mulheres foram autorizadas a praticá-lo. Vejamos agora a capoeira. Sua trajetória também merece comentários. Parte da historiografia a reconhece como produto da hibridização de elementos religiosos e lúdicos, constituindo-se como forma de resistência da população negra. A prática chegou a ser proibida entre 1890 e 1937 e seus representantes, perseguidos. Atualmente, é Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, marcando presença nos espaços mais variados.
Como se observa, os significados atribuídos a essas e tantas outras práticas corporais encontram-se permanentemente em disputa. Logo, as mutações mencionadas não se deram por acaso. O operariado apropriou-se do futebol jogando nas várzeas, reuniu-se em agremiações e passou a rivalizar com as equipes mais abastadas. Enquanto isso, nas ruas, a modalidade reinventou-se dando vazão a inúmeras brincadeiras: gol caixote, bobinho, três dentro três fora etc. Por sua vez, as ações empreendidas pelos movimentos sociais foram determinantes na mudança dos modos de ver não só a capoeira, mas as produções afro-brasileiras de maneira geral. Se, até pouco tempo atrás, era praticada somente nas periferias, hoje ela ocupa as academias e clubes dos bairros centrais, sendo realizada como forma de lazer, condicionamento físico ou técnica de luta. A partir daí, percebe-se a impossibilidade de fixar significados. A depender das relações de poder envolvidas, as formas de representação num dado momento serão legitimadas, transformadas ou apagadas.
Com base nesses pressupostos e no desejo de ajudar a construir uma sociedade menos desigual, o ensino da Educação Física passa a eleger todas as práticas corporais (e não só o esporte) como objetos de estudo, para que as crianças e jovens possam acessar os vários significados que lhes são atribuídos, principalmente, aqueles cultivados pelas pessoas que delas participam. Nesse sentido, as atividades de ensino objetivam a qualificação da leitura e da produção das brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas. O que implica interpretar seus gestos, formatos, indumentárias, enfim, os códigos presentes na execução das práticas corporais, assim como, reelaborá-las em sintonia com as características dos estudantes e do contexto. Tudo isso quer dizer que a definição da prática corporal a ser estudada, melhor dizendo, tematizada, é uma questão política e pedagógica. Estudos recentes denunciam que um currículo pautado exclusivamente nos esportes hegemônicos acaba priorizando os sentidos de um grupo específico, enfatizando seus significados em detrimento de tantos outros, podendo acarretar, à vista disso, a formação de identidades antidemocráticas.
Outro conjunto de pesquisas indica que se o professor ou professora organiza a experiência curricular de tal maneira a prestigiar as práticas corporais realizadas por distintos setores sociais, validando os conhecimentos dos seus praticantes e problematizando enunciados pejorativos que possam surgir, promoverá um ensino a favor das diferenças e, consequentemente, contribuirá para formar sujeitos solidários. Nunca é tarde para lembrar que, felizmente, o Brasil se aproxima da universalização do ensino fundamental. Ou seja, encontramos nas salas de aula crianças e jovens que representam os vários segmentos da população, cada qual com sua própria cultura corporal. Para bem cumprir a sua função, a Educação Física deve fazer dialogar esse repertório, legitimando-o e ampliando-o. Assim, em vez de ingenuamente pretender a formação de atletas, cabe à escola potencializar a multiplicidade, possibilitar infinitas expressões da gestualidade, valorizar outras maneiras de fazer, ver e dizer as práticas corporais e as pessoas que delas participam.
(*) Marcos Garcia Neira é professor da Faculdade de Educação da USP.
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