Cem Anos de Solidão: entre a epopeia e o lirismo
Publicado em 1967, esse romance de Gabriel García Márquez passou a ser considerado um “clássico”, pouco tempo depois de seu aparecimento. O autor tinha quarenta anos quando o livro foi editado e se pode afirmar que é de um dos pontos mais altos de sua carreira como escritor e jornalista.
A narrativa é precedida por uma árvore genealógica que nomeia e enfileira as sete gerações da família Buendía, a quem o narrador atribui a fixação e criação da aldeia de Macondo. Como o enredo acumula numerosas personagens, há múltiplas células dramáticas – que incluem os efeitos provocados pelas visitas dos ciganos levando invenções aos primeiros moradores; a peregrinação dos varões gerados por Úrsula Iguarán e José Arcádio, como o Coronel Aureliano; a força insuperável das mulheres, fossem elas libertárias como Pilar Ternera, Petra Cotes e Amaranta Úrsula, ou castigadas pelo autoflagelo, feito Fernanda del Carpio, ou sua filha Meme.
Por mais de cem anos, essa sucessão de homens e mulheres valorosos esteve relacionada com os rumos da cidade, fosse devido às questões políticas (que levaram os Buendía à guerra em territórios vizinhos, ou à greve local contra os patrões da companhia bananeira fundada pelos estadunidenses); fosse devido aos descaminhos amorosos (que induziram as mulheres a reorientar e reeducar os homens, ensinando-os pelos excessos e faltas).
Isso significa que, ao longo de mais de 400 páginas, Gabo estruturou a narrativa de modo que as particularidades de cada um e as intimidades dos casais se alternassem com as preocupações sociais e a necessidade de defender Macondo dos arbítrios – inventados, primeiro, por um prefeito cercado de homens armados, que queria pintar as casas com as cores de sua fingida convicção; depois, por um punhado de especuladores que, enquanto a natureza permitiu, transformou a cidade num território exportador de bananas.
Desde os parágrafos iniciais, somos surpreendidos pela sabedoria e equidade manifestadas por José Arcádio Buendía, que desenhara as ruas de maneira que “nenhuma casa recebia mais sol que a outra na hora do calor”. A futura cidade, vitimada pela desmedida ambição dos gringos, nascera de um sonho do mesmo José Arcádio Buendía. “No dia seguinte convenceu os seus homens de que jamais encontrariam o mar”, e assim se fundou a antiga aldeia.
Além de Úrsula Iguarán, matriarca que nada tinha de autoritária ou mesquinha, somos apresentados a Pilar Ternera, que logo impressiona e (se) enamora (de) José Arcádio, filho de Úrsula e José Arcádio, pois “aquela mulher, cujo riso explosivo espantava as pombas, não tinha nada a ver com o poder invisível que o ensinava a respirar para dentro e controlar as batidas do coração”. A experiência sublime com Pilar Ternera também educara José Arcádio, a ponto de ele saber explicar ao irmão mais novo (Aureliano) que o amor “É que nem um terremoto”.
À medida que devoramos o romance, recordamos as máximas semeadas por personagens marcantes com que vamos criando curiosa proximidade, tal como a dúvida de José Arcádio Buendía, lançada ao rosto de seus ouvintes (no plano narrativo) e de seus leitores (do lado de fora), que “jamais conseguiu entender o sentido de contenda entre dois adversários que estavam de acordo nos princípios”; ou o rigor autoimposto por Amaranta, ao negar a consumação do amor com Pietro Crespi: “Não seja ingênuo – sorriu -, não caso com você nem morta”.
Esses diálogos e cenas iniciais – que transcrevo a título de amostra, em convite à leitura – dão pequeníssima medida do que vale o livro. Episódios como tais prenunciam o cruzamento entre a vida de personagens – umas expansivas, outras introspectivas; umas libertárias, outra reclusas – como se cada habitante de Macondo fosse a versão em miniatura de um lugar concreto e mágico, sujeito à bonança e à escassez; à justiça e à tirania; ao milagre da fartura alternado com a derrisão provocada pela natureza.
Assim como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, Cem Anos de Solidão é desses livros concebidos com grande fôlego, cuja jornada de leitura gera ainda maior impacto se percorrida em longos serões.
(*) Jean Pierre Chauvin é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.