Deixa fazer!
Os olhos do país se voltaram ao povo Yanomami quando a condição de vida nas terras invadidas por garimpeiros foi exposta. Duas construções sociais disputam espaço como leituras coerentes da realidade. De um lado estão os conceitos sobre natureza e povos indígenas sintetizado e afamado na fala do governador de Roraima: “Imagine você desempregado, pobre, passando fome, doente. Dentro da sua casa tem um quadro do Picasso que vale 1 bilhão de dólares. O que você faria? Venderia. Aí pega o dinheiro e melhora sua qualidade de vida. Igual aos indígenas americanos.
Eles (indígenas) têm que se aculturar, não podem mais ficar no meio da mata, parecendo bicho”. De outro lado, movimentos e instituições sociais rotularam de grotesca, leviana, desumana e preconceituosa esta fala (visão): “Nossos modos de vida nos são negados, como se fôssemos primitivos, incapazes, inumanos”. Além de uma disputa de poder, amparada muitas vezes em posicionamentos considerados imorais (uma escolha pelo mal, conhecendo o bem), existe também uma divergência ideológica mais profunda sobre o valor da natureza.
Progresso material e liberdade individual irrestrita (que não reconhece inequalidades) são os valores que subjazem aos argumentos a favor da exploração incessante de tudo e todos. A postura laissez-faire (“deixa fazer”) surgiu na Europa no século XVIII, associada ao Iluminismo e às reivindicações burguesas de liberdades individuais em oposição à opressão dos monopólios e privilégios nobiliárquicos sobre comércio, terras e relações de trabalho vigentes desde a era feudal. A natureza, antes entendida como uma dádiva divina, ao mesmo tempo edênica e satânica, passou a ser vista como um conjunto passivo de recursos, mecânica e infinitamente capaz de prover os humanos. Ideias antigas sobre a dicotomia civilização-barbárie foram reposicionadas com base no progresso material, situando sociedades não ocidentais/modernas como primitivas e inferiores.
A ética laissez-faire é egoísta, eurocêntrica e utilitarista. Nessa época, nos países ibéricos, a exploração colonial ainda estava amparada nas ideias do mercantilismo e de uma ortodoxia cristã exclusivista e militante que entendia a natureza e os povos ameríndios de forma dual – edênica-satânica, ao mesmo tempo selvagens e pródigos. Como se apropriar da abundância do que tende eternamente ao descontrole senão pela dominação?
Vejo essas duas vertentes de pensamento mescladas às ideias desenvolvimentistas vigentes no Brasil, quiçá em todo o mundo colonizado/subdesenvolvido.
Entre os séculos XVIII e XIX, os limites do utilitarismo individualista irrestrito e da ortodoxia cristã exclusivista e militante começam a ficar evidentes em problemas sociais e ambientais não resolvidos ou novos, como o desemprego, os conflitos de classe, a escravidão, a poluição urbana, o esgotamento de recursos florestais e pesqueiros e a degradação das terras aradas e mineradas. A reivindicação dos direitos coletivos positivos emergiu na percepção de que, se os interesses são desarmônicos, os direitos devem ser harmonizados.
Paralelamente, movimentos romanticistas resgataram e ressignificaram a intuição e a subjetividade e passaram a valorizar a natureza e os povos não ocidentalizados como harmônicos, belos e orgânicos (indivisíveis). Diversas construções sobre a natureza e sua relação com a humanidade passaram a disputar espaço. Para alguns a natureza segue vista de forma utilitária, antropocêntrica, subalterna aos interesses humanos, mas agora se deve maximizar o provimento de benefícios para o maior número de pessoas e pelo maior tempo possível. Dessa visão emerge mais tarde a noção de desenvolvimento sustentável.
Para outros, a presença humana se mostrou danosa e deve ser suprimida de alguns lugares para preservar a integridade, beleza e capacidade de estimulação sensorial e espiritual da natureza. Em um extremo, alguns entendem que os povos e culturas não ocidentais são romantizados como diferentes da humanidade degradadora e posicionados como pertencentes e integrados à natureza. Em outro extremo, tais povos seguem primitivos e degradadores, conforme limitações culturais e tecnológicas. Esses discursos protecionistas da natureza e dos povos indígenas orientam algumas ideias que tendem à manutenção do máximo distanciamento possível entre o universo moderno e os espaços silvestres e povos originários.
No início do século XX, a extinção de espécies e os avanços na compreensão do funcionamento dos ecossistemas provocam uma nova reflexão, reposicionando a espécie humana como parte integrante da natureza, em vez de superior a ela, o que leva ao reconhecimento do direito à existência de todos os seres vivos e por consequência dos ecossistemas. O uso de recursos, por quaisquer sociedades ou espécies, deixa tanto de ser demonizado quanto aceito sem restrições em favor de ideias como evolução, respeito e interdependência e por consequência do coletivo sobre o individual. Essa concepção conservacionista assume como intrínseca a relação dinâmica entre tudo e todos e, ainda, o valor de tudo e todos. Se os interesses coletivos são desarmônicos, os direitos devem ser harmônicos, mas como equacioná-los? Uma vertente radical propõe limites estritos. Outra, utilitarista, propõe uma otimização negociada.
Elementos de todas essas vertentes de pensamento aparecem nos discursos sobre a Amazônia e os Yanomami, e sobre povos indígenas e natureza em geral, frequentemente misturados. A visão laissez-faire e a ortodoxia cristã exclusivista e militante dominantes nos séculos XVII e XVIII, inconsistentes com a complexidade dos desafios socioambientais do século XXI, e que pareciam superadas, voltam a disputar hegemonia com novas roupagens. Abrir o debate sobre pressupostos, valores e consequências das ideias em disputa pode ajudar na construção refletida de uma nova moral, evitando desfechos pela violência e punitivismo.
(*) Demetrio Luis Guadagnin é professor do departamento de Ecologia da UFRGS.