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Discriminação interseccional no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

Rhoana Lersch Oliveira e Vanessa Chiari Gonçalves (*) | 12/11/2022 13:30

O presente relato tem como objetivo compartilhar os resultados da pesquisa intitulada “Feminicídio e discriminação interseccional na América Latina: uma análise à luz da atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos”. O trabalho está situado no campo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, sendo esse um dos ramos do Direito Internacional Público. Intenta-se, assim, situar a discussão nesse campo e, posteriormente, apresentar os detalhes acerca do desenho e da execução de pesquisa.

Quando falamos em direitos humanos no ramo do Direito Internacional, geralmente pensamos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948. Assim, podem-se compreender os direitos humanos desde um ponto de vista tradicional, ou seja, como aqueles direitos que constam desses documentos internacionais e que são universais, de forma que todos os indivíduos os têm como garantidos. A pesquisa da qual trata o presente relato, no entanto, parte de uma perspectiva crítica dos direitos humanos, amparada pela teoria de Joaquín Herrera Flores. Assim, considera-se que os direitos não se satisfazem apenas “por termos direitos” em textos legais.

Na verdade, eles são vistos como processos de luta pelo reforço de direitos já conquistados e pela criação de novos direitos que contemplem indivíduos e particularidades dos sujeitos que possam ter sido excluídos ou não contemplados pelos primeiros processos de luta.

Em outras palavras, os direitos humanos são criações que objetivam o acesso à dignidade e aos bens necessários para uma vida digna. E essa construção pode se dar em espaços de proteção de direitos humanos, como a ONU no sistema global ou os sistemas regionais de proteção; a garantia deles nos diplomas legais, por si só, no entanto, não assegura que todos os indivíduos tenham os seus direitos garantidos.

Nesse diapasão, entende-se que as disposições do espaço social são influenciadas por diversas questões, como raça, gênero, status de cidadania, classe, idade, nacionalidade e outras estruturas que (im)possibilitam o acesso a direitos e aos bens de determinados indivíduos. Dessa forma, a pesquisa tem como chave de leitura a interseccionalidade. Parte-se da noção de que não é possível analisar um fenômeno por apenas uma perspectiva de gênero, por exemplo, fazendo-se necessária a incorporação de uma visão completa e complexa dos indivíduos.

O trabalho fez uso, especificamente, das contribuições da pesquisadora Kimberlé Crenshaw, que desenvolveu pesquisas nos tribunais dos Estados Unidos em casos de violações de direitos de mulheres negras com base na raça e no gênero. Cabe ressaltar, todavia, que a teórica não criou a interseccionalidade, apenas a nomeou e auxiliou na sua disseminação na academia na década de 1990. Ademais, compartilha-se da visão da pesquisadora na medida em que não se faz necessária a alteração de tratados para que haja a inclusão de mais critérios de discriminação proibidos, apenas que a aplicação destes parta de uma análise complexa que considere as especificidades dos sujeitos.

Sendo esses os principais marcos teóricos da pesquisa, mencionam-se, brevemente, dois conceitos fundamentais para o desenvolvimento dela. Salienta-se que se faz uso do conceito político e latino-americano de feminicídio, considerando-se o fenômeno como uma manifestação social do acúmulo de violências com base na teoria social de Michel Misse, em um contexto de omissão e conivência estatal, conforme define Marcela Lagarde.

Ademais, quando falamos de discriminação interseccional, compreendemos que esta é uma espécie do gênero da discriminação múltipla em que mais de um critério de discriminação proibido está envolvido na violação de um direito, como a raça e o gênero.

Como sugerido no título da pesquisa, o objeto de estudo são as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos em casos de feminicídio na América Latina. Assim, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) é o sistema de proteção examinado.

Acentua-se que foram analisadas apenas as decisões cujos autos foram remetidos pela Comissão, considerando o não cumprimento das recomendações pelos Estados nesse órgão. Após a busca no banco de dados do SIDH, quatro casos de feminicídio foram encontrados no tribunal, sendo os seguintes: (i) González y otras Vs. México; (ii) Véliz Franco y otros Vs. Guatemala; (iii) Velásquez Paiz y otros Vs. Guatemala; e (iv) Barbosa de Souza y otros Vs. Brasil.

Os casos, em sua maioria, conforme declarações dos representantes das vítimas, comportavam uma abordagem interseccional, dado que as vítimas teriam sofrido discriminações de raça e/ou classe em conjunto com a de gênero. Para o estudo dos casos, empregou-se o método de análise de conteúdo de Laurence Bardin por considerar-se este um dos mais adequados para uma pesquisa com base documental. Foram elencadas quatro categorias de análise: (a) violência; (b) impunidade; (c) estereótipos; e (d) recomendações. As categorias visam compreender se houve a aplicação da noção de discriminação interseccional ou, ao menos, de uma abordagem interseccional.

Após o exame dos casos, foi possível inferir que o tribunal não aplicou a noção de discriminação interseccional em nenhuma das sentenças.

Por meio das categorias, contudo, concluiu-se que as discriminações de classe e gênero foram percebidas de forma interseccional nos casos González y otras Vs. México e Véliz Franco y otros Vs. Guatemala em relação à violência sofrida pelas vítimas e à ausência de prestação jurisdicional adequada nos países, influenciando na manutenção da impunidade. Ademais, no caso Barbosa de Souza y otros Vs. Brasil, na categoria de recomendações, a atuação da Corte também se aproximou de uma abordagem interseccional. Nos demais casos, no entanto, a abordagem do tribunal pode ser definida como superinclusiva, ou seja, considerou apenas a presença da discriminação de gênero.

(*) Rhoana Lersch Oliveira é estudante do 6.° semestre do curso de Ciências Jurídicas e Sociais da UFRGS e bolsista voluntária do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal e Criminologia (NUPECRIM/CNPq).

(*) Vanessa Chiari Gonçalves é pós-doutora pela Universidade de Berkeley, professora do Departamento de Ciências Penais e do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRGS e coordenadora do NUPECRIM/CNPq.

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