Eleições 2024: grandes desafios tecnológicos e democráticos
Não é de hoje que vivemos tempos de pós-verdade. Grandes narrativas que desprezam, ou desvirtuam, verdades são cada vez mais comuns e, assustadoramente, facilmente aceitas. Fatos objetivos são desprezados e crenças pessoais e emoções apelativas se tornam a principal peça argumentativa e o alicerce de um pseudoconhecimento erguido.
Em um mundo cada vez mais interconectado e de fácil acesso, a abundância não recai somente em informações relevantes e de robusto conhecimento, mas também em narrativas falsas, conspiratórias, tendenciosas ou que priorizam a desinformação.
E, atualmente, o terreno mais fértil para tais desinformações são as redes sociais. Uma desinformação atinge um número incontável de pessoas em apenas alguns segundos. Fato é que os próprios algoritmos destas plataformas engajam o conteúdo para pessoas que se alinham com aquele pensamento, o que é bastante perigoso também, vez que quando o usuário encontra informações que reforçam a sua visão de mundo, além de acreditar sem buscar outros referenciais, dissemina de maneira muito mais veemente.
Com o recente advento e rápida evolução das inteligências artificiais o problema ficou muito mais sério. Agora, além de ser necessária uma robusta verificação sobre o conteúdo da informação, ou desinformação, é preciso observar com muito mais rigor a origem, vez que as inteligências artificiais são capazes de criar vídeos cada vez mais realísticos, impossibilitam o homem médio de identificar se aquele produto é humano ou digital.
A inteligência artificial Sora, por exemplo, que é a nova inteligência artificial da OpenAI, mesma criadora do ChatGPT, promete criar vídeos ultrarrealistas, com qualidade profissional a partir de frases digitadas pelo usuário ou, ainda, a partir de imagens estáticas.
E é evidente que as inteligências artificiais serão cada vez mais comuns durante as campanhas eleitorais.
Novas resoluções - Antevendo os problemas vindouros e a atual falta de regulamentação quanto às inteligências artificias, o Tribunal Superior Eleitoral, em sessão realizada na noite do último dia 27 de fevereiro, aprovou as resoluções que serão aplicadas nas eleições municipais de 2024.
E a preocupação com a utilização indevida ou maquiada das inteligências artificiais para a disseminação de desinformação é patente, conforme texto aprovado:
“Art. 9º-B. A utilização na propaganda eleitoral, em qualquer de suas modalidades, de conteúdo fabricado ou manipulado, em parte ou integralmente, por meio do uso de tecnologias digitais para criar, substituir, omitir, mesclar, alterar a velocidade, ou sobrepor imagens ou sons, incluindo tecnologias de inteligência artificial, deve ser acompanhada de informação explícita e destacada de que o conteúdo foi fabricado ou manipulado e qual tecnologia foi utilizada, submetendo-se o seu descumprimento ao previsto no §1º do artigo 323 do Código Eleitoral, sem prejuízo de aplicação de outras medidas cabíveis quanto a ilicitude do conteúdo”
“§ 1º A fabricação ou manipulação de conteúdo político-eleitoral mencionada neste artigo refere-se à criação ou à edição de conteúdo sintético que ultrapasse ajustes destinados à melhoria da qualidade da imagem ou som.”
“§ 2º É vedada a utilização na propaganda eleitoral, qualquer que seja sua forma ou modalidade, de conteúdo fabricado ou manipulado de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados com potencial de causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral, inclusive na forma de impulsionamento.”
“§3º Após notificação sobre ilicitude de conteúdo impulsionado mencionado no § 2º deste artigo, o provedor de aplicação de internet responsável pela sua circulação adotará as providências para a apuração e indisponibilização. (NR)”
“Art. 9-C. É responsabilidade do provedor de aplicação de internet que permita a veiculação de conteúdo eleitoral a adoção e publicização de medidas para impedir ou diminuir a circulação de conteúdo ilícito que atinja a integridade do processo eleitoral, incluindo a garantia de mecanismos eficazes de notificação, acesso a canal de denúncias e ações corretivas e preventivas.” (NR)
É evidente que a preocupação é legítima, vez que a utilização de inteligência artificial para a criação ou manipulação de desinformações ameaça não só conhecimento empírico, mas também a própria democracia.
Em uma superficial análise podemos citar que o mal uso das inteligências artificiais ofende, por exemplo, o princípio eleitoral da lisura das eleições, insculpido no artigo 23 da Lei Complementar 64/90, vez que os candidatos que se utilizarem de tais tecnologias desvirtuadas estrão, patentemente, em larga vantagem, o que, em determinadas situações, caracterizaria abuso de poder econômico e, até mesmo, político.
A nova resolução busca, também, preservar outro importante princípio eleitoral, qual seja, a autenticidade eleitoral, preservar o bem jurídico, o subscritor Antonio Belarmino Junior[2], em sua obra define “portanto, para que a legitimidade da democracia seja alcançada, as eleições devem, naturalmente, estabelecer dentro de um universo formado pela legalidade, mas também por uma conjunção ética, e a formação das eleições deve ser capaz de combinar, a soberania, a ética dos partidos que são exercidos, com a integridade dos partidos políticos, pela legalidade dos atos, incluindo gastos, captação de recursos, propostas, candidaturas, a fim de eliminar comportamentos antissociais que estão em desacordo com o processo eleitoral e, em última instância, promover a cidadania, sendo este o bem jurídico”.
A manipulação profissional e ultrarrealista da informação através das inteligências artificiais, como já brevemente exposto, consegue alcançar incontáveis pessoas que, ao se sentirem confortáveis com leitura, ou visualização, de informações que reforçam suas convicções, mesmo que falsas ou manipuladas, as repassam a outro incontável número de pessoas, que, certamente, terão a sua vontade eleitoral viciada pelos abusos digitais.
Entre as resoluções aprovadas pelo Tribunal Superior Eleitoral para reger as eleições municipais, destaca-se a proibição da manipulação de conteúdo falso com o intuito de criar ou substituir a imagem ou voz de candidatos, visando a prejudicar ou favorecer candidaturas. Além disso, foi aprovada a restrição do uso de chatbots e avatares para intermediar a comunicação das campanhas com pessoas reais.
É certo que os desafios enfrentados pelas instituições, e agora também pelas plataformas digitais, serão hercúleo e dependerão de um esforço conjunto, pois a rapidez das redes sociais difere da celeridade estatal. Contudo, já houve um grande avanço com as regulamentações por meio de resoluções, as quais visam preservar o bem jurídico eleitoral, garantindo um processo eleitoral justo e íntegro.
(*) Henrique Tremura Lopes é advogado, mestre em Direito Penal e Ciências Criminais pela Universidade de Sevilha (Espanha), professor de Direito Processual Penal e Direito Eleitoral e procurador da Abracrim/SP.
(*) Antonio Aparecido Belarmino Junior é advogado, mestre em Direito Penal e Ciências Criminais pela Universidad de Sevilla, pós-graduado em Ciências Criminais pela FDRP/USP, Presidente da Abracim-SP (Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas no Estado de São Paulo), professor universitário em nível de pós-graduação, autor e parecerista em revistas jurídicas e palestrante.
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