Evasão escolar e pandemia: quanto pior, pior
A evasão escolar é, sem dúvida, uma das formas de expressão da questão social que se agrava significativamente em tempos de pandemia, com a suspensão não planejada das atividades presenciais nas instituições de ensino de diferentes níveis. Trata-se de um fenômeno anterior ao vírus, mas igualmente complexo, avassalador e de alcance universal, que atinge os sistemas educacionais tanto dos países desenvolvidos quanto dos países em desenvolvimento, perpetuando suas disparidades socioeconômicas.
Conforme levantamento divulgado pela UNESCO, em 2018, “em países de baixa renda, a taxa de evasão de estudantes de 15 a 17 anos é de 59%, enquanto nos países ricos é de apenas 6%”. De fato, na América Latina, cujas desigualdades tendem a ser mais evidentes, os índices de evasão escolar, de tão elevados, revelam-se um problema crônico do sistema educacional. No Brasil, por exemplo, no âmbito da educação básica, que contempla a educação infantil (creche e pré-escola), o ensino fundamental e o ensino médio, as maiores taxas de evasão discente se concentram nesta última etapa. O número de jovens brasileiros que não concluem o ensino médio é bastante expressivo e, dessa maneira, merece especial atenção por parte dos governantes e dos formuladores de políticas públicas.
Nesse sentido, convém salientar que a Constituição Federal de 1988 instituiu a educação escolar como direito público subjetivo, inclusive àqueles que não tiveram acesso ou não a concluíram na idade apropriada. A Emenda Constitucional n.º 59/2009, por sua vez, tornou a educação básica obrigatória e gratuita dos quatro aos dezessete anos de idade. Visando à redução das desigualdades educacionais, em 2014, foi aprovado o novo Plano Nacional de Educação (PNE), com vigência até 2024.
Em que pesem os avanços legislativos e normativos citados, fazer com que os adolescentes brasileiros permaneçam na escola até concluírem o ensino médio ainda se constitui o principal obstáculo para que o Brasil consiga universalizar o acesso à educação básica.
Apesar da relevância social desse tema, verifica-se a escassez de estudos acadêmicos robustos sobre a evasão escolar no ensino médio no Brasil. As publicações científicas mais relevantes se concentram nas áreas de Educação e de Ensino, embora o assunto apresente uma dimensão para além dessas fronteiras disciplinares. Pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, como a Sociologia, a Psicologia e o Serviço Social, poderiam assumir de modo mais aguerrido essa empreitada, dadas as ferramentas teóricas e metodológicas de que dispõem para fazê-lo, além das informações já disponibilizadas em bases oficiais, como o INEP e o IBGE.
Dados da PNAD Contínua – 2019, publicados recentemente pelo IBGE, apontam que 51,2% (ou 69,5 milhões) das pessoas com 25 anos ou mais não concluíram essa importante etapa educacional. Entre os principais motivos para a evasão escolar, o mais apontado foi a necessidade de trabalhar (39,1%), seguida pelo desinteresse em estudar (29,2%). Há, porém, importantes diferenças quanto ao gênero: 50% dos homens disseram precisar trabalhar e 33% relataram não ter interesse nos estudos, enquanto 24,1% das mulheres disseram não ter interesse em estudar, seguido de gravidez precoce e da necessidade de trabalhar (ambos com 23,8%). Os piores índices se manifestam nas regiões Norte e Nordeste do país.
Com a pandemia de covid-19, sabe-se que essa cruel realidade se acentuou consideravelmente, ampliando as assimetrias sociais que já assolavam a população brasileira desde a sua formação. Tanto é que a maioria das instituições de ensino da rede privada migrou suas aulas para plataformas digitais específicas, de videoaulas e de atividades online. Enquanto isso, nas escolas da rede pública, em que predomina a escassez de recursos materiais e humanos, multiplicou-se o número de alunos que desistiram de estudar.
Entre os diferentes motivos para a desvinculação dos estudos estão os fatos de que muitos jovens precisam contribuir com a renda familiar – necessidade que aumentou em meio ao contexto de quarentena – e, não menos importante, de que outros tantos não têm acesso aos recursos tecnológicos e à internet, o que inviabiliza o acompanhamento das aulas remotas, síncronas ou assíncronas. Some-se a isso a situação de milhões de alunos que, apesar de regularmente matriculados, não receberam ou não conseguiram se adaptar para realizarem sozinhos, durante o período letivo, as atividades escolares na modalidade a distância.
Essas dificuldades encontradas por estudantes de diferentes etapas da educação básica durante a pandemia têm sido motivo de constante preocupação para especialistas e para instituições vinculadas à educação. No entanto, deveriam fazer parte da agenda prioritária de muitos governantes nas esferas municipal, estadual e federal. Ademais, existe uma triste expectativa de que os estudantes não retornem às aulas presenciais após a pandemia pelo simples descontentamento com o cenário educacional ou pela própria necessidade de auxiliar na composição do orçamento doméstico em razão da perda de postos de trabalho ocupados por familiares no período de quarentena.
Seja qual for a razão apresentada, os efeitos desses milhões de estudantes fora da escola serão irreversíveis ao nosso país. Em tempos de coronavírus, torna-se premente, portanto, a necessidade de criação de medidas não somente paliativas e pontuais de combate à evasão de alunos, sobretudo na educação básica. A simples doação ou disponibilização de equipamentos eletrônicos para que os discentes possam assistir às aulas online não será suficiente. Em última análise, a evasão escolar, decorrente ou não da pandemia, jamais poderá ser concebida como parte integrante do chamado “novo normal”, haja vista que tem afetado, sobretudo, crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade social, acirrando, dessa forma, questões estruturais da sociedade brasileira. Nessa conjuntura, lamentavelmente, quanto pior, pior…
(*) Alynni Luiza Ricco Ávila é servidora da Divisão de Projetos e Grupos de Pesquisa da Propesq e doutoranda em Ciências Sociais na PUCRS.