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Fundo eleitoral e propaganda paga no rádio e na televisão

Por Alexandre Minatti (*) | 11/06/2024 13:30

Desde o advento da EC nº 97/2017 e da Lei nº 13.487/2017, que instituiu o Fundo Eleitoral, aliado ao reconhecimento da inconstitucionalidade da autorização para doações por pessoas jurídicas aos partidos políticos (ADI 4.650), consagrando um modelo misto de financiamento eleitoral, mas com prevalência do financiamento público, o regramento sobre a propaganda eleitoral está ultrapassado e incompatível com o cenário social e político atuais.

Embora atualmente seja vedada a propaganda eleitoral paga no rádio e na televisão, esta não era a realidade anterior. Sob a vigência da Lei nº 1.164/1950, a propaganda eleitoral em emissoras de radiodifusão era paga, observando-se apenas “tabela de preços iguais para todos” (artigo 130).

Neste momento, sob a vigência do Código Eleitoral (Lei nº 4.737/1965), a distribuição do horário eleitoral gratuito era igualitária, eis que o artigo 250, § 2º, impunha à Justiça Eleitoral o ônus de distribuir o horário “tendo em conta os direitos iguais dos partidos“.

Foi somente com a Lei nº 6.091/1974, ou seja, quase 25 anos depois, que a propaganda eleitoral paga nas emissoras de rádio e televisão passou a ser proibida.

Segundo a lição de José Jairo Gomes, esta limitação se justificava a fim de “privilegiar os princípios da isonomia e do equilíbrio entre os participantes do certame”. O propósito da norma era evitar que os partidos políticos mais abastados, ou, noutros termos, aqueles que eram agraciados com volume de doações mais significativo, obtivessem maior exposição do que partidos com menos recursos, tornando mais igualitária a disputa.

Ou seja, a proibição de propaganda paga, portanto, estava lastreada em dois pressupostos: a necessidade de equilíbrio entre os partidos; a distribuição igualitária do tempo do horário eleitoral gratuito.

Esta lógica de distribuição igualitária do horário eleitoral gratuito, que justificava e inspirava a vedação de propaganda paga nos veículos de radiodifusão, é alterada após a vigência da Constituição de 1988, e as legislações que se seguiram estabeleceram o critério da proporcionalidade em relação ao número de representantes de cada partido na Câmara dos Deputados (artigo 74, ‘b’, da Lei nº 8.713/1993 e artigo 57, II, da Lei nº 9.100/1995), inclusive em função do sistema pluripartidário.

Distribuição é constitucional - Com efeito, o STF tem entendimento consolidado no sentido de que que a distribuição desigual do horário eleitoral gratuito, segundo a proporcionalidade com a representação na Câmara dos Deputados, é constitucional e respeita o princípio da isonomia (ADIs 1.351, 1.354, 4.430 e 5.487).

Logo, um dos pilares que inspirava a vedação da propaganda eleitoral paga no rádio e na televisão não se sustenta. A pluralidade da sociedade que resulta num amplo número de legendas, cada qual congregando ideais próprios, como é típico da amplitude constitucional do pluripartidarismo brasileiro (artigo 17), impõe que haja um critério equilibrado para distribuição desigual do tempo de acesso aos meios de comunicação de massa.

Este mesmo racional é válido e aplicável para a distribuição dos recursos públicos para financiamento dos partidos e campanhas (Fundo Partidário e Fundo Eleitoral), como resumidamente pontuou o ministro Ayres Britto, na ADI 4.430:

“É o caso aqui, a lei ficou autorizada, sim, a fazer a distinção entre partidos políticos em matéria de fundo partidário e de acesso aos programas “gratuitos” de rádio e televisão, naturalmente laborando nos planos da razoabilidade e da proporcionalidade.”

Dada a constitucionalidade da distribuição desigual do tempo no horário eleitoral gratuito e da distribuição dos recursos públicos para o financiamento de campanha, resta verificar em que medida se mantém válida a premissa de que o acesso pago ao rádio e à televisão representaria desequilíbrio ilegítimo.

A propaganda eleitoral no rádio e na televisão foi regulamentada na Lei nº 9.504/1997 e a possibilidade de veiculação paga foi vedada, no pressuposto de que o acesso a estas mídias seria desigual.

Todavia, do ponto de vista financeiro, este racional não mais se justifica. Após a Lei nº 13.487/2017, o sistema de financiamento de campanhas, embora formalmente misto, é essencialmente público e a distribuição dos recurso está antecipadamente determinada, segundo a participação de cada partido na Câmara dos Deputados.

Com isso, o poder financeiro de cada partido está pré-determinado pela lei, de modo que o risco de que o sistema eleitoral seja distorcido pela discrepância financeira entre A ou B é mitigado ou, noutros termos, aceito pela legislação, cuja constitucionalidade já se reconheceu.

Não há desequilíbrio eleitoral - Dizer que o acesso pago ao rádio e à televisão deve ser proibido, com isso “eliminando a grande distância que os separava [candidatos menos abastados] dos candidatos mais bafejados pela fortuna ou com melhor suporte econômico e apoio” só é válido quando, de um lado, não há limite de gastos e, de outro, o valor disponível para os partidos flutue livremente, conforme o apoio que receba de seus financiadores de campanha.

A partir do momento em que os recursos à disposição de cada partido são públicos e distribuídos segundo os critérios idênticos e proporcionais, não se pode afirmar que o emprego destes mesmos recursos, desta ou daquela forma, seja fonte de desequilíbrio eleitoral.

A situação se torna ainda mais paradoxal quando se percebe que outro meio de comunicação social, a internet, admite a propaganda eleitoral paga (artigo 57-C da Lei nº 9.504/1997).

No julgamento da ADI 4.430, o ministro Dias Toffoli justifica a distinção de tratamento entre o rádio/televisão e a internet pela incipiência desta última; na época, segundo dados do IBGE de 2010, presente em apenas 30% dos lares brasileiros.

Hoje, no entanto, segundo dados de 2021, a internet está presente em 90% dos lares brasileiros, número equiparável à televisão, com 95,5% de penetração. Isto é, a penetração das mídias tradicionais (rádio e televisão) hoje é equiparável à penetração da internet, e, desta forma, essa justificativa para a distinção de tratamento não se sustenta na realidade.

De outro lado, o argumento econômico só encontra respaldo num modelo centrado no financiamento privado de campanhas. A partir do momento que a lei é quem estabelece os critérios de distribuição dos recursos (públicos) que serão utilizados pelos partidos, o discrime de forças econômicas é legal, e a vedação de emprego dos recursos neste ou naquele meio afronta o princípio da autonomia dos partidos políticos.

Portanto, o segundo pilar que inspirava a proibição de propaganda eleitoral paga nas emissoras de rádio e televisão não mais se sustenta, mas a manutenção dessa assimetria normativa gera inúmeros problemas.

Ainda em 2009, quando estava em debate a propaganda eleitoral na internet, com razão Antonio Carlos Martins Soares e José Roberto Jeronymo da Silva advertiram: “não há porque equiparar a web com as emissoras de rádio e televisão”. A advertência é ainda atual. Enquanto as emissora de rádio e televisão mantém sede e endereço conhecido no Brasil e seguem uma longa lista de normas que as autoriza a operar no país, as “big techs” não têm nenhum compromisso com o País ou com o seu processo eleitoral.

O Brasil assistiu nas eleições de 2022 à dificuldade do TSE e demais autoridades judiciárias para impor às big techs o cumprimento de decisões judiciais e todos os percalços gerados pela propagação de notícias falsas, robôs de compartilhamento etc., o que, inegavelmente, contribui para a assimetria do processo eleitoral e gera distorções que impactam a percepção da realidade pelo eleitor.

Tais distorções foram identificadas e debatidas no seminário “Desafios e ações na era digital”, com a apresentação de estudo “Desinformação e a campanha contra a imprensa — análise do ecossistema de mídias e propaganda digital multiplataforma”, dos professores Rose Marie Santini e Marcio Borges e no NetLab da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Enquanto as redes sociais geram bolhas de (des)informação e se locupletam apenas com os cliques que geram, reproduzindo conteúdos sensacionalistas e sem compromisso com a verdade, as emissoras de rádio e televisão demonstraram, especialmente ao longo do processo eleitoral de 2022, serem fontes confiáveis para divulgação dos fatos.

Apenas para se ter uma referência, os quatro candidatos mais bem votados nas eleições presidenciais de 2022 gastaram R$ 66.469.982,90 apenas com o impulsionamento de conteúdo na internet, enquanto a produção de áudio e vídeo (inclusive vídeos divulgados na internet) somou o valor de R$ 64.837.703,09.

Ou seja, parte considerável dos recursos públicos é gasta com o impulsionamento de conteúdos por meio das redes sociais, as quais têm pouca ou nenhuma responsabilidade com o eleitor brasileiro, não recolhem tributos no Brasil, não geram empregos no Brasil e, mais que isso, desafiam a autoridade da justiça brasileira, criando todos os obstáculos possíveis para cumprir as decisões judiciais.

Por outro lado, a propaganda eleitoral por meio do rádio e da televisão atingirá número superior de lares, é rastreável até o seu verdadeiro emissor, não admite o emprego de robôs de compartilhamento e, mais que isso, não aceita ser distorcida para gerar cliques.

Não se pode aceitar que as empresas brasileiras, que geram recursos e empregos e seguem rígidas normas sejam indevidamente alijadas, obrigadas a participar do processo eleitoral apenas pelo horário eleitoral gratuito, enquanto as big techs recebem, sem prestar um serviço que seja totalmente verificável, dezenas de milhões de reais dos contribuintes.

Mais que isso, se a é a lei que atribui o valor à disposição do partido para a campanha, tolher a possibilidade de o partido empregar estes recursos num sistema de comunicação conhecido e confiável representa indevida ingerência normativa na autonomia dos partidos políticos. Com efeito, “a autonomia partidária, como se sabe, constitui um direito e, ao mesmo tempo, uma garantia fundamental dos partidos políticos, sendo limitada apenas pelos princípios que constam da segunda parte do caput do art. 17 da Carta Magna, a saber: ‘soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana'” (ministro Ricardo Lewandowski, ADI 7.214).

Ora, quando a lei, sem que haja uma razão fundada nos princípios constitucionais acima, veda aos partidos políticos a possibilidade de, autonomamente, gerirem os recursos públicos que lhes são entregues para a elaboração da campanha de seus candidatos, impedindo o acesso à propaganda paga no rádio e na televisão (mas, paradoxalmente, admitindo na internet), viola a autonomia partidária.

Proibir propaganda paga não tem sentido - Como resultado de debates judiciais e legislativos, o Brasil aprovou modificação em sua Constituição para assegurar que o custeio de campanhas eleitorais fosse feito essencialmente por meio do fundo eleitoral. Com a adoção do fundo eleitoral, o montante que os partidos e candidatos podem despender com suas campanhas é limitado pelo Congresso.

O uso destes recursos finitos e limitados, é discricionário de cada partido/candidato, todos com o mesmo volume de recursos, proporcional à sua representatividade na Câmara dos Deputados. Portanto, o pluralismo e a paridade de armas são pressupostos, dado o acesso aos recursos do fundo eleitoral, os quais devem ser investidos pelos candidatos e candidaturas tal qual, a seu juízo, seja o modelo mais eficiente para impactar seus potenciais eleitores.

Já não faz mais sentido proibir a propaganda paga no rádio e na televisão, pois todas as candidaturas têm exatamente a mesma disponibilidade econômica (proporcional aos sufrágios colhidos para a eleição de deputados federais) para investir em um ou outro meio de propaganda política. Nenhuma candidatura está impossibilitada de comprar publicidade no rádio e na televisão: todas podem fazê-lo e têm recursos para fazê-lo, de maneira paritária às demais candidaturas/candidatos.

Essa proibição gera outra distorção negativa para o processo eleitoral. Veja-se, por exemplo o caso das cidades de Ribeirão Pires (SP), Rio Grande da Serra (SP), Taboão da Serra (SP),  próximas à maior metrópole do país, mas sem emissoras de rádio ou televisão.

Estas cidades recebem a propaganda da cidade grande (São Paulo, no exemplo), mas não têm propaganda gratuita dos candidatos locais durante as eleições municipais. Neste caso, um candidato local nunca poderá falar a seu eleitor, por meio da radiodifusão, o que se constitui em dano grave à viabilidade de sua campanha. O eleitor de Ribeirão Pires não pode ver ou ouvir seus candidatos, pelo rádio e pela televisão, nem mesmo na publicidade eleitoral gratuita, porque sua cidade não é atendida para este fim.

Há dano grave à participação eleitoral nestas localidades, para as quais a possibilidade de aquisição de publicidade no rádio e na televisão, com os recursos do Fundo Eleitoral, sob fiscalização da Justiça Eleitoral, seria a correção de uma injustiça.

Portanto, depois da adoção do financiamento público de campanha, a proibição de propaganda paga no rádio e na televisão não é compatível com o novo arcabouço constitucional e, ao contrário de tornar equilibrada a disputa, gera distorções negativas, que prejudicam a comunicação entre eleitor e candidato em determinadas áreas do interior do país, fomenta a comunicação irresponsável por impulsionamento em mídias sociais e elimina a autonomia dos partidos em escolher a melhor forma de se comunicar com o eleitor.

Imprescindível que a lei seja adequada para, autorizando-se a contratação da propaganda eleitoral paga no rádio e na televisão, supere-se a distorção atual que, a um só tempo, limita a autonomia dos partidos políticos e fomenta o crescimento de empresas estrangeiras sem qualquer responsabilidade com a sociedade brasileira e com pouco ou nenhum controle do que é efetivamente praticado, com inúmeras dificuldades para apuração de responsabilidade em caso de infrações à legislação eleitora.

(*) Alexandre Minatti é advogado, mestre em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), especializado em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e membro do Ceapro (Centro de Estudos Avançados de Processo) e do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual).

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