Lei Maria da Penha: 15 anos depois, conquistas e desafios
Um dia desses, durante uma oficina virtual para os (as) integrantes da rede de atendimento à mulher, exibimos a cena de uma novela que mostrava uma personagem, vítima de violência doméstica, chorando, enquanto o advogado a desestimulava alertando para o fato de que no Brasil não existia uma lei para proteger as mulheres e que o agressor acabaria fazendo um acordo com a justiça para “pagar cestas básicas”. Perguntei se alguém arriscava o ano daquela cena e se achavam que hoje era diferente.
A novela se passou em 2003, antes da Lei Maria da Penha que entrou em vigor em 2006, e, embora várias pessoas tenham me respondido com frustração constatando que as mulheres continuam sofrendo violência dentro de suas casas1, necessário reconhecer as boas transformações operadas nesses 15 anos. E, também, evidente, não fechar os olhos para o que ainda precisa ser implementado.
Considerada uma das melhores do mundo, a Lei Maria da Penha teve papel fundamental para retirar o manto da invisibilidade da violência doméstica e familiar, passando a incutir a ideia de que não deve mais ser naturalizada ou tolerada. A sociedade, embora ainda marcada pelo machismo estrutural, vai se dando conta de que violência contra mulher é violação de direitos humanos e não mera briga de casal e que, portanto, a Justiça e nós todos (as) metemos a colher para salvar aquela que é sujeito de direitos e não um objeto.
Como consequência dessa boa intromissão, a partir da lei em comento, não é mais possível ao agressor fazer acordos e “pagar cestas básicas” e, iniciado o processo criminal, a manifestação da mulher pela desistência, o que muitas vezes acontece pelo fato de ainda ser refém do ciclo violento, já não é capaz de impedir o julgamento pelo Poder Judiciário.
Dentre as boas novidades também vieram as medidas protetivas de urgência que, acreditem, salvam vidas.. Não é verdade que a maioria dos feminicídios acontecem quando as mulheres têm a seu favor essa proteção, tanto que o Mapa do Feminicídio da Subsecretaria Estadual de Políticas Públicas para as Mulheres de Mato Grosso do Sul indica que 87,5% das vítimas de feminicídios no ano de 2020 não possuíam as medidas.2 E, então, ao invés de críticas destrutivas, os esforços devem se concentrar no aprimoramento da fiscalização do cumprimento deste instrumento tão valioso e na ampliação da concessão de outras medidas previstas além daquela mais conhecida que proíbe o contato ou comunicação com a vítima. Há outras possibilidades importantes previstas na lei e pouco utilizadas, tais como, a transferência ou matrícula das crianças na escola mais próxima do novo domicílio da mãe, a remoção da servidora pública ou a manutenção do vínculo empregatício daquela que precisa fugir para se abrigar e até a proibição do agressor de vender bens comuns evitando a dilapidação do patrimônio.
Por outro lado, não se deve esquecer que a Lei Maria da Penha é produto da realidade empírica, do movimento das mulheres e, portanto, todos os artigos originariamente previstos não estão ali por acaso. Isso nos faz refletir com receio sobre os inúmeros projetos de leis que atualmente, sem a escuta das maiores interessadas, visam modificações no texto e, também, nos faz perseguir a integral aplicabilidade da lei, artigo por artigo.
Nessa busca destaca-se a urgência na instalação dos juizados de violência doméstica e familiar com competência cível e criminal (competência híbrida) para que um único juiz, de forma concentrada, com perspectiva de gênero e conhecedor do contexto da violência vivida pela mulher que bate às portas da justiça, resolva, ao mesmo tempo e rápido, tanto as questões criminais quanto àquelas de direito de família, como pensão alimentícia para os filhos e partilha de bens, tão ou mais necessárias que a punição do agressor para o rompimento do ciclo da violência. E isso ainda não foi concretizado no nosso país, embora previsto na lei.
E não é só isso. A lei Maria da Penha, muito mais protetiva que punitiva, também preconiza o dever do Poder Público de criar condições para que a mulher alcance seus direitos sociais. Se a mulher sai de um relacionamento violento e não encontra respaldo de políticas públicas que efetivamente concretizem seu direito à moradia, saúde, educação, trabalho e assistência social, certamente terá grandes chances de retornar para a violência e mais, isso encoraja o agressor a continuar. Não há cumprimento da lei se a mulher em situação de violência doméstica não encontra, por exemplo, amparo nos programas habitacionais ou não consegue atendimento psicológico nos centros especializados para fortalecer-se e tampouco para os filhos (as) que em regra presenciam toda a violência. Ora, o sucesso do enfrentamento à violência doméstica está na rede de atendimento articulada, que tem estratégias, que compartilha cuidados e que não atua de forma fragmentada como se vê por aí. A mulher deve sim denunciar, ser encorajada para tanto, contudo, é a na rede forte, acolhedora e eficaz que encontrará a liberdade.
E, por fim, encerro com a força propulsora, a única verdadeiramente capaz de fazer a Lei Maria da Penha cumprir seu papel de lei excepcional que deverá partir quando já não for mais necessária, quando a desigualdade de gênero não for mais capaz de produzir violência em tão altos níveis: a educação!!!! Que assim seja. Está escrito no texto da lei que a União, Estados e Municípios devem promover ações que busquem o destaque nos currículos escolares, de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. Essa disposição legal também não vem sendo efetivada com seriedade e profundidade nos últimos anos, há desconhecimento e medo de se discutir gênero nos bancos escolares. Definitivamente, só quando ensinarmos os meninos que a violência não é forma de resolução de conflitos, que precisam aceitar o não, que são iguais, e não superiores, e que as meninas devem viver sem limitações impostas simplesmente pelo fato de serem mulheres é que a mudança será sólida e duradoura e a cena de novela do início será passado não mais condizente com a realidade em nenhum aspecto.
(*) Thaís Dominato Silva Teixeira é defensora pública de Defesa da Mulher e coordenadora do NUDEM.