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Modernidade e sucessão: como funciona a herança digital

Por Rodrigo Chanes Marcogni (*) | 19/03/2024 13:33

É conceito bastante comum na análise sociológica a reflexão de que nem sempre a velocidade com que o direito “se movimenta”, seja em termos de atualização legislativa, seja com relação à renovação do entendimento dos tribunais sobre determinado fato, acompanha a velocidade das mudanças sociais.

Há pouco de mais uma década fomos surpreendidos com o surgimento de um novo nicho profissional: o dos influencers e criadores de conteúdo digital.

Pessoas que ou já eram, ou se tornam, figuras públicas e que não raro detêm uma malha de milhões de seguidores em suas redes sociais.

Obviamente que tal exposição, para um público de milhões de pessoas ávidas por dar aquela “espiada” na vida cotidiana de tais figuras, acabou por trazer ao jogo um viés extremamente importante para a retroalimentação desse mercado de rede sociais e influenciadores — o viés econômico.

O alcance direcionado e ao mesmo tempo massificado que detentores de grandes perfis em redes sociais conseguem atingir se tornou na sociedade atual um dos mais, senão o mais, eficaz meio de divulgação de marca e produto, ainda que tal marca e produto possam ser entendidos como a própria persona em questão.

Apenas para termos uma perspectiva daquilo que estamos falando, em números, vejamos a seguir a lista dos dez brasileiros com o maior número de seguidores apenas na rede social Instagram [1]:

1º lugar: Neymar Jr. — 169 milhões de seguidores;

2º lugar: Ronaldinho Gaúcho — 63,3 milhões de seguidores;

3º lugar: Anitta — 59,1 milhões de seguidores;

4º lugar: Whindersson Nunes — 57,2 milhões de seguidores;

5º lugar: Marcelo Vieira Jr. — 51,9 milhões de seguidores;

6º lugar: Tatá Werneck — 51,5 milhões de seguidores;

7º lugar: Gusttavo Lima — 42,5 milhões de seguidores;

8º lugar: Larissa Manoela — 43,6 milhões de seguidores;

9º lugar: Marília Mendonça — 41,9 milhões de seguidores;

10º lugar: Bruna Marquezine — 40 milhões de seguidores.

É inquestionável o poder de alcance que uma conta com mais de 40 milhões de seguidores pode ter.

Além da imagem do influenciador que, em muitos casos, “vende” por si só, há outras redes sociais como o YouTube, por exemplo, onde hoje já podemos considerar que está hospedado o trabalho de uma vida.

Quem se dedica exclusivamente a tal atividade passa horas e horas detido na elaboração de pautas, gravação, edição, administração de perfil, etc. Tudo para que o conteúdo esteja ali, pronto a ser consumido por aqueles que o buscam.

E temos ainda, os famosos publi posts, ou postagens pagas. Ocasião em que o influenciador firma um contrato para a divulgação de um produto ou serviço, em que muitas vezes a remuneração tem uma margem atrelada ao número de views (visualizações).

A morte do influenciador - Para a reflexão proposta neste artigo, a problemática surge quando o influenciador digital falece.

Ora, quando estamos diante de outros bens, mais comuns, uma casa, um carro, não há dúvidas. Os herdeiros daquele que faleceu recebem seus bens na exata proporção em a lei civil determina.

Mas e o conteúdo digital? E a página ou perfil da figura pública falecida? Como ficam?

Temos inclusive dentre a lista acima apresentada um exemplo bastante triste. É o caso da cantora Marília Mendonça, com mais de 40 milhões de seguidores, era um fenômeno nas redes sociais. Alguém poderia administrar a conta da cantora? É permitido o acesso ao conteúdo pelos herdeiros? A conta pode ou deve ser convertida em uma espécie de memorial?

Em princípio deve prevalecer a validade dos termos de serviços da plataforma e da manifestação de vontade do próprio usuário que aponta a sua opção no site (autorizou a exclusão imediata?), respeito à autonomia da vontade e proteção aos direitos da personalidade.

Quando pensamos em termos históricos, a existência das redes sociais é muito recente. E como ressaltamos no início de nossa reflexão, nem sempre a velocidade da lei e da jurisprudência acompanham a velocidade das mudanças sociais. Neste caso menos ainda. Vamos lembrar que, hoje, internet e velocidade são sinônimos.

Pois bem, a resposta mais fácil para nossa indagação seria simples. Os herdeiros decidem o que fazer com a conta/perfil do falecido. Mas a resposta mais simples talvez não seja a mais adequada.

Como fica a situação em que aquele canal de rede social era o meio de vida da pessoa que faleceu? Muitas vezes ali está armazenado um conteúdo de horas e horas de trabalho. Entrevistas. Resultado de estudos e pesquisas. Podem existir contratos atrelados ao conteúdo.

Os herdeiros podem seguir explorando a rentabilidade do conteúdo já existente? Podem explorar a imagem do falecido?

Hoje, apesar da importância dessas questões, não temos uma resposta assertiva.

Ademais, não podemos esquecer que as redes sociais têm donos. Empresas com interesses próprios e que na formatação de suas plataformas estabelecem na maioria dos casos regras e políticas de uso bem definidas.

Será que é do interesse de tais empresas a manutenção de tais perfis/canais? Se sim, por quanto tempo? E se esse interesse contrastar com o interesse dos herdeiros?

Exclusão ou memorial - No caso do Instagram, por exemplo, os termos de uso dão apenas duas opções para o perfil da pessoa que faleceu: ou a conta é excluída, ou é transformada em memorial.

Quanto à exclusão, não há maiores dúvidas, a conta deixa de existir e todo seu conteúdo é apagado.

Já para a conta transformada em memorial, são aplicadas regras que podem ser consideradas rígidas, já que impedem qualquer alteração e/ou gerenciamento do perfil.

Assim dispõem os termos de uso:

“As contas transformadas em memorial são um lugar para lembrar a vida de uma pessoa falecida. As contas transformadas em memorial no Instagram têm as seguintes características principais:

  • Ninguém pode entrar em uma conta transformada em memorial.
  • A expressão “Em memória de” será exibida ao lado do nome da pessoa no perfil.
  • As publicações que a pessoa falecida compartilhou, incluindo fotos e vídeos, permanecerão no Instagram e ficarão visíveis para o público com o qual foram compartilhadas.
  • As contas transformadas em memorial não aparecem em alguns locais no Instagram, como no Explorar.

Depois que a conta é transformada em memorial, ninguém pode alterar as publicações ou as informações existentes nela. Isso significa que estes itens não podem ser alterados:

  • Fotos ou vídeos que a pessoa adicionou ao próprio perfil.
  • Comentários nas publicações compartilhadas pela pessoa no próprio perfil.
  • Configurações de privacidade do perfil.
  • Foto do perfil atual, seguidores ou pessoas que o perfil segue.

Caso considere que uma publicação ou um comentário de um perfil transformado em memorial viola as Diretrizes da Comunidade ou os Termos de Uso, você pode fazer uma denúncia usando o recurso de denúncia localizado ao lado da publicação ou do comentário.

Saiba como solicitar a transformação em memorial da conta de uma pessoa falecida.”

Como se observa, a empresa (Meta) não permite qualquer tipo de exploração do conteúdo existente na conta em questão.

Já no YouTube, cuja titularidade é da gigante Google, a única possibilidade que a empresa dá para os herdeiros de influenciadores falecidos é o acesso temporário ao canal para que o conteúdo ali existente seja baixado, já que depois o canal será excluído. Ou seja, tampouco há qualquer possibilidade de exploração econômica.

Obviamente que temos que considerar aqui que ao estabelecerem suas regras e políticas de uso as empresas que hospedam as redes sociais o fazem imbuídas no princípio constitucional do livre exercício econômico.

E, ainda que tais termos de uso possam ser considerados como verdadeiros contratos de adesão, em que aquele que adere não tem qualquer possibilidade de discussão sobre o conteúdo, de certo modo, o usuário está (ou deveria estar) ciente das regras que está aderindo.

Por outro lado, é inegável que o conteúdo criado pode ser uma grande fonte de renda. Assim como é inegável que um site particular criado para inserção de conteúdo que outrora era hospedado em redes sociais por exemplo, jamais terá a mesma expressão de suas plataformas originais (Instagram, Facebook, Twitter, YouTube, TikTok, etc.).

Assim, se por um lado a exclusão total de contas/perfis de influenciadores falecidos respeita as regras das empresas titulares de tais plataformas, por outro lado tal proceder em muitos casos prejudica sobremaneira o direito dos herdeiros que poderiam encontrar ali uma fonte quiçá contínua de renda.

Direitos autorais - A solução que alguns estudiosos do tema, no afã de uma resposta rápida, buscam se valer, entendendo que a questão seria submetida ao menos neste momento inicial ao regramento da Lei de Direitos Autorais, a nosso ver não atinge a complexidade do tema, tampouco respeita a debate que se faz inevitável.

Ao cometar sobre a questão, o professor Roberto Rosas nos evidencia que:

“o tradicional direito sucessório positivado no Código Civil de 2002, estático por natureza, não prevê soluções apriorísticas para lidar com a revolução tecnológica. Os ativos digitais, bens dotados de valor econômico, extrapatrimonial e existencial, contudo, não devem ficar à mercê da própria sorte. A ausência de destino certo pode ensejar a perda ou a utilização sem autorização do autor da herança do seu patrimônio digital post mortem pelas plataformas online. À míngua de regulação da herança digital por lei esparsa no Brasil busca-se identificar alguns parâmetros para os intérpretes a partir de princípios clássicos e da experiência estrangeira. Diversos litígios sucessórios acerca dos ativos digitais estão sendo ajuizados perante o Judiciário, convocado a oferecer soluções ainda casuísticas. A relevância do tema também se revela por ser objeto de preocupação do legislador ordinário”.

É justamente sobre essa realidade atual de soluções esparsas e casuísticas sobre tema que consideramos tão importante na modernidade que precisamos nos ater e buscar algum tipo de mudança.

A questão está posta, convivemos com ela cotidianamente, e sua solução não virá de um nicho particular da sociedade. Será imprescindível uma discussão ampla com participação do poder público, empresas privadas e sociedade civil para que um entendimento mais objetivo e sem tantas lacunas seja dado ao tema.

De toda forma, nossa opinião é de que no futuro, ao contrário do que verificamos hoje, o direito dos herdeiros deverá ser primazia. Obviamente que isso deverá acontecer dentre de algum parâmetro de razoabilidade, sobretudo se pensarmos na necessidade de preservação da memória do falecido.

Mas, não se pode ignorar que o conteúdo criado por influenciadores não raras vezes constituem um verdadeiro legado patrimonial, e como tal deverá ser encarado, viabilizando a seus descendentes que dele usufruam se esta for sua vontade.

(*) Rodrigo Chanes Marcogni é advogado especialista em contencioso cível e planejamento patrimonial e sucessório.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

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