Mudanças climáticas e saúde: em rota de colisão
Como nós, seres humanos, chegamos ao ponto de alterar algo tão complexo quanto o clima, e de forma irreversível? A ciência trabalha nessa questão há décadas e tem comprovado que nossas atividades afetam, e muito, o equilíbrio climático da Terra. Mais ainda, nossas ações — e nossas negligências, apesar dos alertas dos pesquisadores — têm colocado em risco acelerado a saúde de todos.
A partir das análises de recifes de coral, de núcleos de gelo, de anéis de crescimento das árvores, de sedimentos em cavernas, lagos e mares, cientistas conseguiram reconstituir as temperaturas dos últimos dois milênios em diferentes regiões do globo terrestre. O levantamento mostra que o século XX, marcado pela industrialização voraz, teve as maiores médias de temperaturas registradas.
Neste século XXI, cada ano que passa é destacado como “o mais quente da história”, cuja conta principal é respondida pelas crescentes emissões de CO2 e pela destruição do meio ambiente. É uma rotina que se repete desde o ano 2000. De acordo com a agência meteorológica da ONU, a World Meteorological Organization (WMO), e vários outros institutos do clima, o calor que vem quebrando recordes sucessivos ocorre combinado com chuvas torrenciais, ciclones, degelo, secas prolongadas em muitos países, enchentes mais frequentes e agressivas em outros.
No Brasil, as mudanças climáticas extremas causaram danos em um curto espaço de tempo, como jamais registrado. Durante o carnaval de 2023, nos dias 18 e 19 de fevereiro, o litoral norte de São Paulo anotou um recorde no acumulado de chuvas em 24 horas, com 683 milímetros, resultando em 65 mortes e milhares de desabrigados. Eu estava em Camburizinho, local dos mais agredidos pela violência da tempestade excepcional e pelas ondas de lama vinda das encostas ocupadas pelos mais pobres.
Antigos moradores locais me contaram que, ao longo das últimas três décadas, juntamente com a devastação da Mata Atlântica, a construção de condomínios de médio e alto padrão, casas de luxo, hotéis e negócios para atender os turistas foi ocupando áreas privilegiadas da faixa litorânea. Assim, a especulação imobiliária empurra a população originária — e menos favorecida — para o alto dos morros. Muitas das novas e vistosas construções são ilegais e igualmente agressoras à cobertura vegetal tanto da costa quanto dos morros. A área urbana de São Sebastião, que abriga o litoral norte, quadruplicou em 30 anos, às custas da depredação ambiental.
Logo depois da tragédia paulista, em menos de um mês, e também de forma incomum, a Amazônia brasileira testemunhou a sanha da crise climática. Amazonas, Acre, Pará, Rondônia, Tocantins e Maranhão sofreram com enchentes e destruição em massa, um cenário especialmente trágico para os mais pobres. Em Manaus, capital amazonense, casas inteiras foram arrastadas pela fúria das cheias. Rio Branco, no Acre, decretou estado de emergência após o rio Acre subir e isolar mais de 60 bairros e comunidades rurais. Tempestades no nordeste e sudeste do Pará arruinaram estradas e desalojaram centenas de famílias. Aldeias da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, próximas a Guajará-Mirim, em Rondônia, ficaram imersas como nunca se viu. O alagamento da Ilha Bananal, no Tocantins, obrigou o resgate de indígenas por helicópteros. No estado vizinho, Maranhão, cerca de 50 cidades entraram em situação de emergência, deixando mais de 30 mil famílias desabrigadas com as chuvas extremas.
O pacote de destruição da floresta amazônica envolve o agronegócio e a exploração mineral que estão, coincidentemente, no topo dos maiores emissores de gases de efeito estufa no planeta. São ainda essas mesmas atividades que impulsionam o desmatamento, a atividade madeireira em larga escala, a superexploração da água, a construção de infraestruturas em meio às matas e o garimpo ilegal. Neste ciclo de agressão, em que a biodiversidade florestal é aniquilada para dar lugar à monocultura, os povos indígenas pagam o preço alto da invasão de suas terras: o balanço inclui mortes, desnutrição e doenças diversas, além de recém-nascidos com deficiências devido à poluição dos rios com metais pesados usados pelo garimpo.
Um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) associa a fragmentação de florestas com doenças infecciosas emergentes. Um exemplo é o ebola, na África, epidemia originada a partir da proximidade crescente entre humanos e primatas selvagens portadores do vírus. Contagioso e letal, o ebola é uma zoonose, transmissível de animais para humanos e vice-versa.
A relação da degradação das florestas com a saúde preocupa a ciência. A Amazônia, caso sofra um processo de savanização com os crimes ambientais contínuos, se tornará um ambiente de risco capaz de originar moléstias com potencial pandêmico. Convertido em savana, o ecossistema amazônico poderá desequilibrar sua rica diversidade de microrganismos, desencadeando agentes nocivos aptos a adoecer animais e humanos.
Esse problema será ainda agravado com a reorganização das espécies ao redor do mundo, fenômeno já detectado por pesquisadores. A revista americana Science publicou que animais terrestres estão se deslocando em direção aos polos a uma média de 17 quilômetros por década. Por sua vez, as espécies marinhas se movimentam 72 quilômetros nesse mesmo intervalo de tempo. Eles estão migrando em busca de territórios com clima menos quente. Com isso, alguns bichos hospedeiros de doenças irão conviver com outros que normalmente não as abrigariam, criando assim novas vias de transmissão. Mudanças climáticas, e seus efeitos, não formam um enredo de futurologia. Como testemunhamos até aqui, a ciência estuda e alerta sobre fatos reais.
(*) Sergio Tulio Caldas é jornalista, escritor, diretor de TV e roteirista.