O ano foi auspicioso para as garantias constitucionais
Se começarmos a retrospectiva de 2011 pelo fim, uma grande notícia no âmbito da jurisdição penal é que a 5ª e a 6ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça, finalmente, julgarão apenas matérias criminais. De acordo com a Proposta de Emenda Regimental 3/11, não haverá redistribuição dos feitos em decorrência das alterações de competência, o que significa dizer que os ministros da 3ª Seção julgarão os processos já em tramitação. Com isso, a 3ª Seção poderá definitivamente se especializar e, quem sabe, dar conta em tempo razoável do crescente número de Habeas Corpus ali impetrados. A proposta foi originariamente apresentada pela ministra Maria Thereza de Assis Moura, mas foi encaminhada à presidência do STJ pela ministra Nancy Andrighi, presidente da Comissão de Regimento Interno.
No plano das decisões judiciais, as mais impactantes vieram do STJ nos casos das Operações Castelo de Areia, Satiagraha e Boi Barrica, depois rebatizada de Operação Faktor. Em todas elas a Corte Cidadã marcou posição na defesa das garantias constitucionais e processuais.
Na Castelo de Areia, dois Habeas Corpus enfrentaram o tema da ilegalidade representada pelo desencadeamento de medidas invasivas, notadamente escutas telefônicas, a partir de denúncia anônima e como primeira medida (cf. HCs 137.349 e 159.159). A expressiva ementa dos acórdãos relatados pela ministra Maria Thereza, tem o seguinte teor:
“As garantias do processo penal albergadas na Constituição Federal não toleram o vício da ilegalidade mesmo que produzido em fase embrionária da persecução penal.
A denúncia anônima, como bem definida pelo pensamento desta Corte, pode originar procedimentos de apuração de crime, desde que empreendida investigações preliminares e respeitados os limites impostos pelos direitos fundamentais do cidadão, o que leva a considerar imprópria a realização de medidas coercitivas absolutamente genéricas e invasivas à intimidade tendo por fundamento somente este elemento de indicação da prática delituosa.
A exigência de fundamentação das decisões judiciais, contida no art. 93, IX, da CR, não se compadece com justificação transversa, utilizada apenas como forma de tangenciar a verdade real e confundir a defesa dos investigados, mesmo que, ao depois, supunha-se estar imbuída dos melhores sentimentos de proteção social.
Verificada a incongruência de motivação do ato judicial de deferimento de medida cautelar, in casu, de quebra de sigilo de dados, afigura-se inoportuno o juízo de proporcionalidade nele previsto como garantia de prevalência da segurança social frente ao primado da proteção do direito individual.
Ordem concedida” (DJ 30/5/2011).
Houve Recurso Extraordinário interposto pelo Ministério Público Federal para o Supremo Tribunal Federal, mas que foi inadmitido. Agora o ministro Joaquim Barbosa deverá apreciar o Agravo interposto.
Outra decisão rumorosa foi a concessiva da ordem no caso da Satiagraha. Em artigo sobre o tema, a ConJur registrou: “A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça anulou todos os procedimentos decorrentes da Operação da Satiagraha da Polícia Federal, inclusive a condenação do banqueiro Daniel Dantas por corrupção ativa. Por três votos a dois, o STJ considerou que a atuação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) na operação da PF violou os princípios constitucionais da impessoalidade, da legalidade e do devido processo legal. Como bem disse o presidente da 5ª Turma, ministro Jorge Mussi, ao dar o voto que desempatou o julgamento, "Se a prova é natimorta, passemos desde logo o atestado de óbito, para que ela não seja usada contra nenhum cidadão" (HC 149250, DJe 5/9/2011). A ementa do acórdão da relatoria do desembargador convocado, grande expressão da magistratura carioca, Adilson Macabu, elucida o caso:
“1.Uma análise detida dos 11 (onze) volumes que compõem o HC demonstra que existe uma grande quantidade de provas aptas a confirmar, cabalmente, a participação indevida, flagrantemente ilegal e abusiva, da ABIN e do investigador particular contratado pelo Delegado responsável pela chefia da Operação Satiagraha.
2. Não há se falar em compartilhamento de dados entre a ABIN e a Polícia Federal, haja vista que a hipótese dos autos não se enquadra nas exceções previstas na Lei nº 9.883/99.
3. Vivemos em um Estado Democrático de Direito, no qual, como nos ensina a professora Ada Pellegrini Grinover, in “Nulidades no Processo Penal”, "o direito à prova está limitado, na medida em que constitui as garantias do contraditório e da ampla defesa, de sorte que o seu exercício não pode ultrapassar os limites da lei e, sobretudo, da Constituição."
4. No caso em exame, é inquestionável o prejuízo acarretado pelas investigações realizadas em desconformidade com as normas legais, e não convalescem, sob qualquer ângulo que seja analisada a questão, porquanto é manifesta a nulidade das diligências perpetradas pelos agentes da ABIN e um ex-agente do SNI, ao arrepio da lei.
5. Insta assinalar, por oportuno, que o juiz deve estrita fidelidade à lei penal, dela não podendo se afastar a não ser que imprudentemente se arrisque a percorrer, de forma isolada, o caminho tortuoso da subjetividade que, não poucas vezes, desemboca na odiosa perda da imparcialidade. Ele não deve, jamais, perder de vista a importância da democracia e do Estado Democrático de Direito.
6. Portanto, inexistem dúvidas de que tais provas estão irremediavelmente maculadas, devendo ser consideradas ilícitas e inadmissíveis, circunstâncias que as tornam destituídas de qualquer eficácia jurídica, consoante entendimento já cristalizado pela doutrina pacífica e lastreado na torrencial jurisprudência dos nossos tribunais” (HC 149.250, DJe 5/9/2011).
Não houve recurso do MPF.
Ainda no tópico Operação Satiagraha, foi importante a decisão do Pleno do STF na Reclamação 9.324, relatora a ministra Cármen Lúcia, quando se reafirmou o respeito ao às prerrogativas profissionais constantes do Estatuto do Advogado e na Súmula Vinculante 14, que assegura vista dos autos (e das provas) colhidas no curso da investigação. O acórdão ainda não foi publicado. Custa a acreditar que a despeito da lei e da Súmula Vinculante ainda se soneguem provas dos autos aos defensores dos acusados.
Ainda no tema das grandes operações e para finalizar, a Operação Boi Barrica, depois rebatizada de Operação Faktor. Ao comentar a decisão do STJ no HC 191.378 (DJe 5/12/2011), conduzida com muito esmero pelo ministro Sebastião Reis Júnior, com a costumeira precisão, Pierpaolo Bottini disse: “O fato consumado e passado é o reconhecimento pelo STJ da invalidade de certos atos de investigação, como escutas telefônicas fundadas exclusivamente em denúncias anônimas, ou decisões de sua prorrogação sem motivação idônea.”[1]
O julgamento da operação em questão trouxe à baila novamente a questão da pressão sobre o Judiciário quando profere decisões que supostamente desagradam a opinião pública. Por isso na companhia de Celso Vilardi e Pierpaolo Bottini escrevemos: “O emparedamento do Judiciário por conta de decisões que possam desagradar à opinião pública coloca-nos na inaceitável condição de reféns de algo que se presta a aniquilar a própria razão de ser do Poder Judiciário numa sociedade democrática. Se o juiz, seja de que grau for, tiver que decidir atendendo ao clamor público teremos, não a aplicação do Direito com seus princípios, mas um linchamento. Para os que imaginam ser esse um modo democrático de realização da justiça, isso, não custa lembrar, realiza o ideal nazista, segundo o qual “Direito é aquilo que é útil aos interesses do povo” (Gilmar Mendes, Folha de S. Paulo, 24 de outubro de 93). Não por acaso se tem insistido que o combate à criminalidade deve ser feito nos marcos da legislação e com a rigorosa observância do devido processo legal. Do contrário, campeará o autoritarismo de quem se julga intérprete dos “interesses do povo”[2].
No Supremo Tribunal Federal, o julgamento da “Marcha da Maconha” foi o grande hit. Em duas oportunidades no ano, o Pleno da Suprema Corte afirmou que não pode ser considerada prática de apologia marchas pró-legalização das drogas: ADPF 187, relatada pelo ministro Celso de Mello e julgada em 15 de junho de 2011, e ADI 4.274, relatado pelo ministro Ayres Britto e julgada em 23 de novembro de 2011. Por unanimidade, neste último julgamento, os ministros, em reunião Plenária, decidiram que esse tipo de manifestação não pode ser considerado crime previsto no artigo 33, parágrafo 2º, da Lei de Tóxicos (Lei 11.343/2006), o que configuraria afronta aos direitos de reunião e de livre expressão do pensamento, previstos na Constituição Federal.
O Plenário, como registrou o noticiário do STF[3], “seguiu o voto do ministro Ayres Britto, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.274, proposta pela Procuradoria-Geral da República, determinando que o dispositivo da Lei de Tóxicos — que classifica como crime o ato de induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga — seja interpretado em conformidade com a Constituição Federal. Dessa forma, exclui-se da interpretação da norma “qualquer significado que enseje a proibição de manifestação e debates públicos acerca da descriminalização ou legalização de drogas ou de qualquer substância que leve ao entorpecimento episódico ou viciado das faculdades psicofísicas”, conforme destacou o relator em seu voto.
Segundo o ministro Ayres Britto, o direito de reunião, assim como os direitos à informação e à liberdade de expressão, “fazem parte do rol de direitos individuais de matriz constitucional, tidos como direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana e da cidadania”. “Vivemos hoje em uma sociedade de informação e de comunicação, em que o ser humano primeiro se informa para melhor se comunicar com seus semelhantes, e o direito de reunião pode ser visto como especial veículo dessa busca de informação para uma consciente tomada de posição comunicacional”.
As decisões em questão devem ser comemoradas não apenas como um marco do direito de manifestação, mas como o início da superação de preconceitos que têm contribuindo para tornar o debate sobre a maconha mais confuso e menos científico.
Por outro lado, a grande novidade legislativa foi a introdução da Lei 12.403/11 que, definitivamente, afirmou o caráter excepcional, de ultima ratio, da prisão processual, qualquer que seja ela; o dever de fundamentação e, como dever de se respeitar a garantia da proporcionalidade, a possibilidade de sua decretação somente nos casos em que a pena máxima cominada for pena superior a quatro anos (art. 313, I, do CPP com a nova redação). Mas de par com esses novos vetores, a introdução de medidas cautelares alternativas (diversas da prisão) retirou o juiz penal da escravidão representada pelo binômio: prisão ou liberdade. Agora o juiz pode impor o recolhimento noturno, nos fins de semana, comparecimento periódico em juízo (art. 319 do CPP) e, em certos casos, a prisão domiciliar (art. 318).
No plano legislativo, está em discussão agora na Câmara Federal a reforma do Código de Processo Penal e, no Senado Federal, a nova geração da Lei de Lavagem de Capitais. Está tornando antecedentes quaisquer crimes e pretendendo introduzir o polêmico dever de o advogado comunicar operações atípicas às autoridades. Ressalvada a condição de partícipe do advogado no crime de lavagem, parece-nos patente o conflito de notificar as autoridades com o dever de sigilo imposto por lei ao advogado e que tem assento constitucional no direito à ampla defesa. Como quer que seja, muita água vai rolar nessa matéria.
O ano de 2011 foi auspicioso para a afirmação das garantias constitucionais e se encerra com chave de ouro com a decisão da 2ª Turma do STF, relatada pelo ministro Joaquim Barbosa, proclamando a necessidade de o STJ conhecer o Habeas Corpus 110.118.
Segundo o noticiário do STF, “ao se manifestar contra a interpretação restritiva dada pelo STJ ao instituto do HC, o ministro Celso de Mello disse que o Habeas Corpus é “um dos mais caros remédios constitucionais a preservar o regime democrático”.
Ele lembrou que a Suprema Corte superou até mesmo a vedação imposta ao HC pelo Ato Institucional 5, baixado pelo regime militar em 13 de dezembro de 1968. O AI-5, como era denominado, dispunha que não caberia HC contra ato atentatório à segurança nacional. O ministro lembrou que, na época, o STF decidiu que o Judiciário deveria examinar, em cada caso, se se tratava mesmo de tal crime, porque os órgãos de repressão de então costumavam subsumir qualquer crime à Lei de Segurança Nacional para acobertar seus abusos contra os direitos humanos.
O ministro Celso de Mello disse ainda que o HC representa “um patrimônio que deve ser preservado” e que “é grande a responsabilidade do STF de torná-lo acessível a qualquer pessoa”. Lembrou, neste contexto, que um Habeas manuscrito, vindo de uma pessoa que se encontrava presa, levou a Suprema Corte a até modificar sua jurisprudência para permitir que também os condenados por crimes hediondos tivessem direito à progressão do regime de pena.
No mesmo sentido votou o ministro Gilmar Mendes, lembrando que o HC é tão importante que a Suprema Corte costuma dar provimento a cerca de 30% dos que nela são impetrados. Ele tampouco viu obstáculo ao fato de a sentença contra I.B. já ter transitado em julgado. “O HC é mais rápido que um processo revisional”, disse ele, embora ponderando que o Habeas Corpus não serve para revolvimento de provas, a não ser que elas já constem, inequívocas, da própria impetração[4].
O presidente da Turma, ministro Ayres Britto, acompanhou essa corrente, ao lembrar que o HC é uma espécie de primus inter pares (primeiro entre iguais), tendo precedência sobre mandados de segurança, mandados de injunção, ações populares e outras vias legais. Isso porque sua própria previsão constitucional já contempla seu emprego para os casos de alguém sofrer ameaça ou coação à sua liberdade de locomoção.
Na linha do julgado em destaque, vai a importante obra lançada pelo ministro Gilmar Mendes na qual o grande juiz e jurista demonstra como o Habeas Corpus permitiu o desmantelamento de uma articulação autoritária em matéria investigativa (cf. “Estado de Direito e Jusrisdição Constitucional: 2002-2010”[5]).
(*) Alberto Zacharias Toron é advogado, professor de Direito Penal da PUC-SP e doutor em Direito Penal pela USP
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