O dilema das prisões brasileiras
No último mês de janeiro assistimos, estarrecidos, às rebeliões nos presídios de Manaus, Boa Vista e Natal. As cenas de corpos sem cabeças chocaram a opinião pública nacional e internacional. Chegou-se a falar em crise do sistema penitenciário e para resolvê-la seriam necessárias medidas imediatas. Como em outras ocasiões, as autoridades anunciaram mutirões nas varas de execuções penais, liberação de recursos para construções de presídios e envio de tropas federais.
Infelizmente estas rebeliões não foram as primeiras e provavelmente não serão as últimas. A questão prisional brasileira é muito mais complexa do que imagina o senso comum e a mídia. Ela exige ações de médio e longo prazo, que por motivos óbvios, vão muito além das respostas imediatas que foram anunciadas.
Segundo o ICPS (Centro Internacional de Estudos Prisionais), em 2014 o Brasil tinha a 4ª maior população prisional do mundo, com 584.361 pessoas cumprindo pena em regime fechado. Cerca de 36% desse total são presos provisórios, que ainda não foram julgados. Mas o que mais chama atenção é o crescimento vertiginoso dessa população. O número de presos saltou 129% entre 2004 e 2014. Desde 2006 observa-se o aumento exponencial de pessoas presas por tráfico de drogas. Os presos por tráfico de drogas são o maior contingente prisional (27%), seguidos de roubos (21%), furtos (11%) e homicídios (14%).
Podemos distinguir dois problemas na questão prisional. O primeiro, é um problema de caixa. Ou seja, temos muito mais pessoas presas do que vagas nos presídios. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, o Brasil tem um déficit de 213 mil vagas, o que equivale a 57,6% da capacidade atual dos presídios. O segundo, é um problema de fluxo. Entram muito mais presos no sistema do que saem. Portanto não basta construir mais presídios. É preciso urgentemente diminuir o fluxo de entrada no sistema. Se isso não acontecer, qualquer esforço para reduzir o déficit de vagas será em vão.
A consequência mais imediata da superlotação é a precária administração prisional. Boa parte dos presídios brasileiros funciona num regime de autogestão dos presos. Os agentes penitenciários cuidam dos muros e os presos administram o dia a dia das prisões, que operam em níveis dramáticos de saúde e salubridade. Este cenário de governos dos presos é propício para o surgimento de grupos de autoproteção. Foi o caso do PCC (Primeiro Comando da Capital) e da FDN (Família do Norte) que surgiram inicialmente dentro dos presídios e depois expandiram sua atuação para fora dos muros.
Por outro lado, qualquer atividade de ressocialização fica prejudicada. É praticamente impossível o funcionamento regular de escolas, fábricas ou oficinas para os presos. Até menos as atividades básicas como banho de sol e visitas são prejudicadas. Nestas condições, não é de espantar que a taxa de reincidência criminal seja superior a 70% em alguns estados.
É certo que precisamos de mais vagas. Mas também precisamos de unidades prisionais diferentes, capazes de separar os presos pelo regime de cumprimento de pena e tipo de crime. Nesse horizonte desolador, há boas experiências que podem ser copiadas. É o caso das APACs. Presídios com baixo grau de segurança e, portanto, de baixo custo, com baixíssimas taxas de reincidência.
O problema de fluxo diz respeito à política criminal (ou a sua ausência) adotada no país. A maior parte das pessoas que ingressam no sistema está cumprindo prisão provisória e foi presa pelo crime de tráfico de drogas. Em geral, são jovens pobres e negros apreendidos em flagrante com pequena quantidade de drogas. Normalmente menos de 50g de maconha. Só no Distrito Federal são presas em flagrante cerca de 30 pessoas por dia.
A maior parte desses jovens ocupa a baixa hierarquia no negócio da droga. São enquadrados na chamada lei 11343/06, que abrandou as punições para o consumo e agravou as penas para tráfico. A lei não estabeleceu critérios objetivos para distinguir usuários de traficantes e, tampouco, definiu uma gradação sobre o envolvimento no tráfico. Na prática, o enquadramento é feito pela polícia em função do contexto e status social das pessoas envolvidas.
Algumas iniciativas foram adotadas visando diminuir o número de presos provisórios. A criação de centrais de penas e medidas alternativas é uma delas. Outra iniciativa foi o estabelecimento das audiências de custódia. São medidas, que se forem bem implantadas, poderão ajudar a diminuir a entrada de presos no sistema. Entretanto, precisamos de muito mais do que isso. Precisamos repensar nossa política sobre drogas. É a partir dela que polícias, promotorias e varas criminais estabelecem seus índices de produtividade. O resultado disso é um sistema de justiça criminal, prisioneiro numa gaiola de ferro da lógica de guerra às drogas, que se tornou uma máquina de moer carne preta e pobre.
(*) Arthur Trindade Maranhão Costa é professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (NEVIS/UnB) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; mestre em Ciência Política e doutor em Sociologia pela UnB; foi secretário de Segurança Pública e Paz Social do Distrito Federal