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O discurso narcisista: um sintoma da era digital?

Por Jean Pierre Chauvin (*) | 11/03/2024 08:30

No âmbito da comunicação na academia, um dos fenômenos mais perceptíveis, recentemente, diz respeito às marcas de referenciação de si mesmo no discurso. Quando emprego o termo “discurso”, refiro-me tanto à correspondência (menos formal) por e-mail, quanto ao teor de projetos, relatórios, dissertações, teses ou artigos científicos.

Há pouco tempo, perguntava aos alunos do curso de Editoração, na Escola de Comunicações e Artes da USP, se eles também percebiam esses traços de personalismo nos discursos de modo geral. Houve consenso da turma.

Para além dos efeitos da macroeconomia e das formas de sociabilidade, uma das possíveis explicações pode estar no incremento dos gadgets, aplicativos e redes sociais, que desde meados da década de 1990 estimularam a transição o cultivo do mass media para a cultura do self media.

Atrelado a isso, está o crescente estímulo à superexposição – inicialmente, via texto (blogs, chats etc.), atualmente devido ao cultivo preponderante das imagens, combinado a enunciados fragmentários e minúsculos. Por sinal, textos e imagens da era digital guardam em comum a supremacia do Eu, reconhecendo, ou não, a importância dos outros em sua existência.

Após participar de quase 200 bancas, ao longo de 14 anos de atuação no ensino superior, as estatísticas tendem a confirmar o grande aumento dessas marcas redundantes de primeira pessoa no discurso. São recorrentes frases que reiteram a centralidade do Eu, seja em áudios, seja na correspondência por escrito, entre este professor e seus alunos. Construções como: “Na minha tese, eu discuto a construção das personagens”, ou “Minha ideia é”; “No meu trabalho, parto da hipótese de que” são cada vez mais frequentes.

Não se está a questionar a firme postura do sujeito, perante questões decisivas e de interesse coletivo: posicionar-se num país desigual e excludente é louvável. O que se problematiza é a suposta necessidade de o sujeito reiterar as marcas que apontam para si mesmo, no material que já leva o seu nome (capa, página de rosto, ficha catalográfica, sumário etc.).

Sendo ou não sintoma do hiper-individualismo (termo cunhado por Gilles Lipovestky há mais de 30 anos), seja por conta das contingências sociais, psicológicas ou emocionais, o discurso com traços redundantes do enunciador é uma realidade com que precisamos lidar.

O que este professor tem feito, frente a tal diagnóstico, é orientar seus alunos (de graduação e pós-graduação) a se conscientizarem de que o corpus de pesquisa; o método de trabalho; o referencial teórico; os resultados do trabalho falam em nome do próprio autor e, na maioria dos casos, de sua efetiva parceria com o orientador.

Como se pode imaginar, trata-se de uma luta cotidiana, pois não se está a condenar os alunos por repetirem pronomes, verbos ou advérbios, mas a alertá-los sobre o caráter personalista (que, em alguns casos, soa como pretensão demasiada), sugerido pelo teor e pelo estilo da própria escrita acadêmica.

A essa altura, alguns orientandos devem estar cansados de escutar que importa menos o “seu” nome que a qualidade do trabalho conduzido. Contudo, certos aconselhamentos podem ser úteis. Afinal, não cabe ao próprio autor listar as (supostas) virtudes e (pretensas) descobertas propiciadas pela pesquisa.

(*) Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

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