“O inferno são os outros?”
Muitas vezes nos perguntamos “onde gostaríamos de estar daqui a dez anos?”. Acredito que ninguém imaginou que, entre tantos projetos e planos a serem executados, em um futuro próximo, nos veríamos diante de um inimigo invisível: o coronavírus. Ao que tudo indica, segundo pesquisas divulgadas desde o início da pandemia, o vírus que causa reações corporais, como febre, dores de cabeça e no corpo, indisposição que culmina com a falta de ar inexplicável, “como se a pessoa tivesse corrido uma maratona e não tivesse consciência corporal de quando parar a sensação de cansaço”, provoca, para além de danos físicos, também uma mudança no campo social.
Uma prova disso é que a humanidade estava despreparada tanto no sentido emocional e psicológico quanto no sentido social e econômico para lidar com a situação de pandemia. A notícia que era trazida pela mídia chegava ao ponto de ser ridicularizada com comentários do tipo “é só uma doença da Ásia, logo não chega ao Brasil” ou “a mídia exagera”, ou pior, “é só uma gripezinha”.
A corrida para a contenção em alguns países foi rápida; em outros, nem tanto. Infelizmente, algumas pessoas assumiram uma postura negacionista, ao dizerem que o coronavírus era uma estratégia política para o enfraquecimento de quem estava, ou está, no poder. Bem, podemos perceber que, dois anos depois do início do que supostamente seria o isolamento, a situação se complicou demasiadamente. O Brasil por muitos meses ficou em situação difícil. O maior país do hemisfério sul já foi o epicentro da pandemia que ainda assola o planeta!
Diante de tantos fatos, relatos, comentários e notícias diárias, existem pessoas que insistem em se manter no mundo da fantasia. Será que isso é explicado como uma espécie de histeria coletiva? Fanatismo? Ou medo de aceitar a realidade tal como ela é ou se apresenta? O principal ponto é que o vírus existe e ele já deve ter chegado em cada cidadão direta ou indiretamente. Por que negar? Não precisamos mais politizar vírus nenhum. O que precisamos é de mais bom senso para agir diante de uma realidade trágica. Afinal de contas, parentes e amigos que se foram, acometidos pelo tal vírus, não retornam para nossas vidas, mesmo com a normalização das atividades sociais pós-vacina.
O que significaram, para o nosso imaginário, essas várias quarentenas que passamos longe fisicamente de antigas aglomerações? Considerando a política do isolamento social como forma de conter a propagação do vírus, começamos a refletir sobre os prós e contras do isolamento para além da situação de pandemia. Segundo a afirmação do filósofo Jean-Paul Sartre, “O inferno são os outros”, como poderíamos avaliar o grau de relacionamento entre as pessoas que são “obrigadas” a permanecerem em casa e se relacionarem com os seus?
Sartre, no ano de 1944, escreveu uma peça teatral “Entre Quatro Paredes” (Huis Clos, em francês), que conta a história de três pessoas mortas condenadas a passar a eternidade confinadas em um mesmo quarto. Com esse confinamento, o relacionamento que se desenvolve entre elas é tão desgastante que um personagem termina a peça dizendo: “O inferno são os outros”. Sartre não apresenta sua filosofia existencialista sob os ditames da crença, logo a visão de inferno, nesse sentido, é real quando temos que passar a eternidade próximos a pessoas indesejadas, isto é, muito além de avaliar apenas um local que fede a enxofre e é quente.
O verdadeiro inferno, portanto, é resultante de uma vida de relacionamentos negativos. Com isso, outros sentimentos são envolvidos nessa relação, como dor, sofrimento ou até mesmo angústia, própria da condição da existência humana.
O mais irônico é que Sartre acreditava que, para alcançarmos a verdadeira realidade, precisaríamos viver em isolamento. O que podemos extrair de positivo disso?
Sartre ainda ressalta que, se as pessoas estão num relacionamento fracassado, a vida é um inferno, mas isso não significa que essa seja a regra para os relacionamentos, uma vez que também há relacionamentos que são saudáveis e positivos. Além do mais, para qualquer indivíduo preocupado com os relacionamentos sociais e envolvido na busca de uma vida plena, a ideia de que o inferno são os outros é, no mínimo, inquietante, pois nos obriga a refletir sobre nós mesmos, sobre as pessoas com quem compartilhamos a vida, sobre a influência que exercemos uns sobre os outros e sobre o que podemos fazer (se é que podemos fazer alguma coisa) para encontrar a felicidade.
Será que o isolamento continua sendo desgastante para o homem que vive a pandemia ou é apenas uma trégua do verdadeiro inferno: violência, discriminação, desigualdade, assédio, etc.? E a última pergunta, não menos importante: Será que estamos prontos para encarar o mundo depois do confinamento, sabendo que a vida nunca mais será como foi?
(*) Jéssica de Farias Mesquita é aluna de doutorado do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFRGS.