O Islã na África Ocidental entre os séculos XVI e XIX
O islã na África ocidental ganhou corpo a partir da chegada dos reformistas islâmicos fulas – uma denominação portuguesa (peul, fulbe e futanke, segundo as denominações francesa e inglesa) –, entre os séculos XVI e XVII, e alterou o cenário em termos políticos, militares e, sobretudo, religiosos. Reformistas islâmicos criaram estados teocráticos a partir da formação do imamadu – centralização do governo nas mãos de um chefe religioso que pode ser um almami ou mesmo um chefe de família. A instituição política, social e religiosa centraliza-se nas linhagens familiares.
Pathé Diagne (1976) descreve no livro Pouvoir Politique Traditionnel en Afrique Occidentale (Poder Político Tradicional em África Ocidental) como os movimentos de imigrações fulas reformistas islâmicos vindas de distintas partes de África afetaram a estrutura organizacional das sociedades autóctones, invisibilizando todas as composições de estado dessas sociedades. Mas certos grupos mantiveram estruturas organizacionais como parte da sua evolução. Ainda assim, absorveram definitivamente os elementos estrangeiros linguísticos e culturais e vice-versa.
Moldes culturais islâmicos na África Ocidental não são dissociáveis das tradições costumeiras. Davies Robinson (1985), em L’espace, les metaphores et l’intensité de l’islam ouest-africain (O espaço, as metáforas e a intensidade do islã oeste africano), argumenta que há uma presença notável dos costumes africanos dentro do islã e uma a vinculação das línguas africanas com o árabe como uma língua de comunicação para facilitar principalmente nas orações que são redigidas e faladas em língua árabe, a exemplo do Fulani, Mandinga, Hauçás, Seréré, entre outros. Ao mesmo tempo, há um esforço contínuo para estabelecer lugares sagrados na África Ocidental: túmulos de certos estudiosos no ciclo do Níger se tornam objeto de peregrinação. Dingiray, cidade onde O Xeji de Umar Tal foi sepultado se torna um lugar sagrado para quem pertence a sua tradição.
Elikia M’Bokolo afirma no livro África negra: história e civilização II (2011) que a vida religiosa dos muçulmanos na África Ocidental está congregada em duas confrarias: a Qadiria, fundada no Iraque ao sul do Cáspio no século XI por Abd Al-Quadir El Gilani, nascido em 1077, considerado o santo do islã, vinculado a uma maioria mandinga; e Tijania, ordem religiosa (tariqa) muito popular no Níger e no Senegal. Foi fundada por Ahmed Al-Tijani, em Madi, na Argélia, em 1782, difundida em Fez em 1788 e daí espalhada por todo o Marrocos e a África subsaariana. Ganhou adeptos entre os fulas da região de Labe (Futa Djalon), os mouros e os grupos saracolés, nalus e biafadas islamizados por movimentos reformistas dos fulas.
O império muçulmano teve condições favoráveis para a sua expansão nos lugares mais distantes do continente, pela similaridade dos usos e costumes tradicionais africanos compatíveis ao islã. O comércio facilitou as elites convertidas a manterem seu poder e justificarem suas posições na difusão do islamismo. Vivacidades islâmicas por parte dos africanos são apreciadas de uma forma negativa como um islã negro – são novos elementos embrionários da resistência à presença islâmica. Por causa da miscigenação cultural, os usos e costumes africanos foram adicionados ao islã, já que os que se convertiam passavam a pertencer a uma sociedade dentro do islã, mas atrelada às culturas tradicionais
Além do mais, o islã africano parte de uma discussão idealizada pelos dogmas e seitas islâmicos que se proliferou perante a sua ascensão: o islã impuro na África Ocidental e puro entre os árabes da África do Norte – interpretações islâmicas também presentes nas narrativas colonialistas numa conjuntura de um islã hegemônico, algo que não é entre os africanos.
Cumpre informar que alguns especialistas, em parte não africanos, distorcem os processos impostos pela islamização, esquecendo que o próprio islã se acomodou na África Ocidental. A existência de ritos não muçulmanos de forma alguma indica a manutenção estrita de um universo tradicional; pelo contrário, na maioria das sociedades afetadas pelo islã, o que persiste são principalmente espíritos locais, lugares santos e talismãs que nunca foram abandonados.
Em suma, a imagem desconfigurada do islã na África Ocidental não é uma curiosidade por parte dos pesquisadores não africanos, pois ela expressa a valorização dos costumes, ritos e práticas culturais africanos que foram incorporados no islã. A denominação de um islã africano parte desse pressuposto da africanização do islã. A expansão islâmica, sob perspectiva jihadista ou não, contribuiu para a formação e criação de novos estados em África.
(*) Domingos Mula Cá Júnior é historiador e mestrando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.