O resíduo sólido é a prova da nossa insustentabilidade
Resíduo é aquilo que resta, que remanesce, a diferença entre o valor verdadeiro e o valor observado, erro. Essa definição nos remete à ideia de desperdício, de algo que não deveria existir. O excesso e o desperdício são características latentes da sociedade atual e têm como consequência direta a geração de resíduo sólido.
Fisicamente, o resíduo contém as mesmas matérias-primas encontradas nos produtos que consumimos. O que os diferencia é a maneira como percebemos o seu valor. No século XXI, há diferentes razões para descartar objetos. Razões que, se não inteiramente novas, operam em uma escala sem precedentes. Em muitas situações, a ausência de valor é subjetiva e não está diretamente relacionada às condições físicas do produto ou à sua funcionalidade. O aumento agressivo de inovações tecnológicas criou uma geração de consumidores ansiosos por comprar coisas que se tornarão obsoletas antes mesmo que a maioria das pessoas tenha acesso a elas. A ética do consumo se baseia no direito natural a novos objetos. Veneramos a novidade e, com isso, enchemos nossas lixeiras com coisas perfeitamente funcionais, mas que simplesmente deixaram de ser novas.
A primeira vez em que a maioria das pessoas se depara com o resíduo é quando os pais pedem para colocar o saco de lixo para fora ou no local de coleta. Ao executar essa ação simples, aprendemos que o lixo consiste em coisas quebradas, estragadas, velhas e sem valor, coisas que não precisamos e não queremos mais. Tudo fechado num saco plástico preto. O que acontece posteriormente ao descarte é desnecessário saber. Essa narrativa nos ensinou a não pensar na coleta e no destino do lixo. Ao longo das últimas décadas, entretanto, o saco de lixo vem se tornando cada vez maior e já não podemos ignorá-lo.
A geração de resíduo sólido se tornou um dos problemas mais significativos do nosso tempo. Em geral, a gestão de resíduos sólidos é o maior item orçamentário nas prefeituras e fonte direta de geração de empregos. Na era da sustentabilidade, o desafio para os gestores públicos é imenso: gerir o resíduo sólido da maneira mais econômica, social e ambientalmente adequada possível. Essa tarefa envolve monitorar a geração do resíduo, sua composição, seus movimentos transfronteiriços, realizar campanhas de educação e informação, alocar verbas do orçamento, estabelecer parcerias e contratos, adotar tecnologias de tratamento e promover a geração de emprego. Uma cidade que não consegue gerir efetivamente o seu resíduo sólido, raramente consegue administrar de forma eficiente os demais serviços públicos.
A reciclagem é ainda a política pública mais popular nos programas de gerenciamento de resíduos sólidos. Vista como política ambiental, governos municipais têm defendido o reprocessamento industrial do resíduo sólido e da produção de matéria-prima secundária como uma forma viável de recuperar o seu valor. No entanto, nos últimos anos, a reciclagem vem apresentando diversos efeitos colaterais, entre eles o downcycling. Isso ocorre quando o processo de reciclagem reduz a qualidade de um material e produz uma matéria-prima secundária de baixa qualidade, utilizada para fabricar produtos que, ao final de sua vida útil, não podem ser reciclados. Além disso, o principal problema da reciclagem deve-se ao fato dela desviar o foco do quão é insustentável o atual sistema econômico baseado no consumo. A maioria das pessoas adeptas da reciclagem declaram que o seu direito de consumir advém da sua contribuição à coleta seletiva. Por isso, a reciclagem como política pública, dificilmente contribuirá para a diminuição da geração de resíduo sólido, pois não age para reduzir a taxa de crescimento do consumo.
A prevenção, um dos princípios Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/10), ainda é mal compreendida pela maioria das pessoas. Muitas vezes, elas identificam a reciclagem como uma forma de reduzir a quantidade de resíduo depositada nas lixeiras convencionais. Contudo, a prevenção ocorre antes que um produto seja percebido como resíduo. Ela é composta por atividades que visam: (1) eliminar ou reduzir a quantidade de resíduo gerado; (2) melhorar a eficiência dos produtos através de processos de reutilização, recuperação, manutenção; e (3) aumentar a durabilidade e longevidade dos produtos. Ou seja, a prevenção pode ser feita de maneiras diferentes dependendo das características do produto, do ator social e das circunstâncias locais. Essa condição multifacetada da prevenção a difere da reciclagem, que se limita a um comportamento homogêneo (segregar o resíduo e destiná-lo à coleta seletiva). Sua natureza heterogênea pode influenciar preferências e escolhas, traduzindo-se em comportamentos diferentes, já que cada indivíduo julga as suas ações de prevenção de geração de resíduo sólido de acordo com sua perspectiva.
Existem vários exemplos de ações individuais para evitar a geração de resíduo sólido como mudar hábitos de consumo, eliminar o uso de produtos descartáveis, evitar produtos com um número excessivo de embalagens, dar preferência aos que possuam manutenção e reutilizar ao invés de descartar. Prevenir significa, portanto, consumir de modo responsável. Em uma sociedade hiperconsumista, o consumo responsável se coloca como um antídoto ao assumir que todo consumo gera impactos ambientais e sociais em todas as fases do ciclo de vida do produto. Essa nova forma de consumir exige entender o comportamento humano e suas interfaces, pois a valoração de um produto é fluída e definida socialmente. Algumas pessoas guardam objetos por razões sentimentais, outras porque sua cultura valoriza a preservação de determinados objetos e outras porque o grupo social ao qual pertencem desenvolveu práticas de reutilização.
Prevenir a geração de resíduo sólido requer não apenas inovações tecnológicas em relação ao produto, mas também legitimidade das políticas públicas. Legitimidade em relação à percepção da população de que as suas metas são baseadas em valores centrais pró-ambientais estabelecidos pela sociedade. Qualquer tentativa de garantir a conformidade pública com os requisitos de uma política de prevenção da geração de resíduo sólido não será bem-sucedida à medida que o grau de legitimidade da política diminuir. Consequentemente, a legitimidade tem como condição prévia a educação para uma cidadania informada, visando uma democracia participativa. Educar não é somente informar. Vivemos sobrecarregados por informação, que acaba causando dificuldade de raciocínio, obstruindo nossas ações. Educar a população para prevenção significa viabilizar a formação de competências, conhecimentos e experiências para formar uma base sólida, de forma que, quando um indivíduo decide reduzir a geração de resíduos, isso possa ser facilmente reconhecido.
A educação voltada ao consumo responsável não é apenas importante para motivar a população a se envolver em comportamentos voltados à prevenção. No campo do design, por exemplo, muitos especialistas não conseguem inferir corretamente os impactos ambientais e sociais de seus projetos ou dos sistemas produtivos das empresas. Como consequência, temos, por exemplo, máquinas de café que utilizam cápsulas de café orgânico, frutas e legumes orgânicos embalados em filme plástico, roupas produzidas com algodão orgânico importado e transportado a longas distâncias, sucos naturais envasados em garrafas de vidro não-retornáveis. Essas situações poderiam ser, no mínimo, contornadas se esses profissionais tivessem o conhecimento da importância em inferir corretamente os riscos ambientais e o impacto desses produtos.
O que vemos em nossas lixeiras é apenas a ponta do iceberg. Na visão tradicional dos gestores públicos, reduzir a geração de resíduos sólidos implica diretamente em reduzir a atividade econômica, o que se traduz na redução do consumo que, por sua vez, não se mostra atraente como atividade de prevenção. É necessário mudar essa perspectiva e investir em alternativas inovadoras ao hiperconsumo por meio de uma compreensão melhor dos geradores diretos e indiretos de resíduo sólido e de como a população e os demais atores sociais lidam com a questão do resíduo. O produto deve ser compreendido para além do seu ciclo de vida, incluindo seu design e simbologia. O cidadão não deve apenas reduzir o seu consumo, deve exigir produtos mais duráveis, menos tóxicos, projetados para agregar valor e com informações claras sobre seu processo de fabricação, uso e pós-uso. Portanto, políticas de gestão de resíduo sólido devem se basear em programas de educação para mudança comportamental, lembrando que será mais fácil alterar o comportamento de consumo da população na medida em que houver mais situações sociais para apoiar essa mudança.
(*) Ana Paula Bortoleto é professora Livre-Docente do Departamento de Infraestrutura e Ambiente da FECFAU e docente permanente do Programa de Doutorado em Ambiente e Sociedade/NEPAM.