Orlas urbanas: que paisagens fazemos durar?
“Se abríssemos pessoas, encontraríamos paisagens”: tal frase, proferida no documentário As Praias de Agnes (2008), da cineasta belga Agnes Vardá, faz-nos pensar a indissociabilidade entre espaços de vida e formas de percepção, memória, afeto; no quanto as paisagens expressam – ou poderiam expressar – a multiplicidade das formas de vida do mundo. Se, como Agnes, buscássemos abrir cidades e paisagens em sua dimensão subjetiva, que humanidade poderíamos encontrar?
Ao longo de mais de um século de planejamento urbano, as orlas de Porto Alegre vêm protagonizando projetos, propostas e discussões sobre a cidade que se quer. Refletir sobre os conflitos envolvidos nos rumos de nossas orlas implica adentrar uma discussão mais ampla sobre o desejo de cidade e sobre o desejo de paisagem. Significa falar das lógicas neoliberais de apagamento e autorização discursiva que perpassam cidades mundo afora. Tais lógicas se expressam e se atualizam permanentemente na expulsão de povos originários de seus territórios. Na proliferação de imagens urbanas que consagram certas versões de realidade e modos de vida em detrimento de outros. Na produção de desinformação e indiferença com a crescente crise de nossos ecossistemas. Nas desapropriações truculentas de comunidades historicamente marginalizadas.
Em julho deste ano, por exemplo, foi lançada a pedra fundamental do projeto Parque da Orla. Trata-se da concessão do poder público municipal a uma concessionária privada de uma área de 250 mil metros quadrados no Parque da Harmonia – um espaço verde e público referencial na área central da cidade – por 35 anos, renovável pelo mesmo período. Buscando “criar o maior complexo temático turístico das capitais do Brasil”, o projeto inclui vilas temáticas aludindo à imigração italiana e alemã, centro de eventos de grandes proporções e a nova Casa do Gaúcho, além de atrações como o Parque Terra dos Dinossauros. O discurso mistura ideias como a suposta redescoberta da Orla do Guaíba e o reforço da economia turística por meio de uma semigratuidade do espaço – prometendo acesso gratuito ao parque e cobrança nas atrações.
Se a paisagem é de todes e para todes, o que está em jogo nesse tipo de intervenção urbana? Como aceitar propostas que dialogam apenas com alguns grupos sociais enquanto idealizam e produzem uma versão dominante e parcial da história de Porto Alegre? O que significa “devolver” a orla do Guaíba à população quando as propostas estão vinculadas estritamente às culturas colonizadoras dessas terras e dessas bordas d’água?
Como lidar com uma intervenção dessa magnitude, que não reconhece a presença e a memória dos povos originários e de matriz africana, e que faz durar e perdurar, no tempo e no espaço, sentidos alheios a tais culturas?
O não reconhecimento da multiplicidade de usos e grupos sociais que frequentam as orlas da cidade há muitas décadas reforça modelos eurocêntricos de produção de cidades, modelizando projetos e intervenções urbanas que legitimam mentalidades e desejos afeitos à manutenção de regimes do capital. São promessas de futuro ligadas à invenção de um passado que privilegia povos colonizadores e com eles converte a paisagem urbana em nichos de mercado.
Nossa postura é de que a paisagem, em sua dimensão política, ajuda a entrever disputas entre diferentes desejos de cidade, de forma a desnaturalizar as dominâncias na produção de subjetividades que legitimam e autorizam a cidade financeirizada. Engendrada na experiência viva, complexa e cotidiana dos sujeitos e coletividades, a paisagem expressa o enlace, nos termos propostos por Augustin Berque, entre as formas de expressão cultural do mundo sensível (marca) e as formas de percepção, significação e compreensão do mundo de determinada cultura (matriz).
Se as formas de construir, de habitar e de apreender o que nos acontece são largamente controladas pelo instrumental neoliberal, pensemos a produção de paisagens urbanas contemporâneas, conforme Francesc Muñoz, como a fabricação de paisagens ‘in vitro’, manipuladas midiática e discursivamente a partir de modelos globais de consumo.
Nossas cidades tornam-se, cada vez mais, banalizadas, homogêneas e excludentes, a partir de discursos que se apropriam de conceitos como espaço público, democracia, patrimônio e sustentabilidade. Desse modo, vão sendo destruídas as paisagens cotidianas, ancestrais, de multiplicidade, de coexistência, de fauna e flora autóctones e de geomorfologia originária.
É preciso problematizar noções urbanísticas eurocêntricas nas quais se negocia o espaço público em processos provisórios ou permanentes de privatização. Ainda que constem como espaços teoricamente “públicos”, a própria roupagem recebida – estetizada e espetacularizada – constrange o acesso de grupos que não correspondam social, econômica ou esteticamente a essa paisagem financeirizada. Seja em sua faceta marca – paisagens globais cuja imagem é convertida em recurso econômico através de arquiteturas singulares e funcionalidades ligadas ao consumo –, seja como matriz identificada com modos de vida pautados pelo norte global, as orlas urbanas convocam uma reflexão crítica sobre o urbano. Pensar essas orlas como arquétipos de um planejamento urbano de matriz neoliberal pode nos fazer avançar na desidentificação com o regime colonial-cafenístico postulado por Suely Rolnik.
Paisagens idealizadas pelo capital, enunciadas por narrativas dominantes, que oprimem diferenças e apagam existências. Paisagens que nos levam a repensar as matrizes político-culturais da produção urbana e reivindicar a descolonização do pensamento da paisagem como objeto. Seria possível, em pleno século XXI, dotar as paisagens de nossos cotidianos com multiplicidade, democracia e, enfim, humanidades que partilhem a vida com outros seres? É preciso abrir as paisagens para, como diz Ailton Krenak, dar fluxo a um desejo de ar e de água que diga algo diferente a nossa subjetividade.
(*) Daniele Caron é doutora em Urbanismo, docente e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR/UFRGS) e coordenadora do grupo de pesquisa, ensino e extensão Margem_Laboratório de narrativas urbanas.
(*) Gianluca Perseu é arquiteto e urbanista, especialista em Gestão de Projetos e Obras (UniRitter) e mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo PROPUR/UFRGS.