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Os preços e a inflação na pandemia

Alessandro Donadio Miebach (*) | 09/05/2021 07:18

A discussão sobre a elevação dos preços e seus efeitos deletérios na condição de vida da população brasileira – especialmente aquela com menor renda – foi retomada nos últimos meses. Os resultados de índices de preços, como o IPC-IEPE, calculado pela Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, para Porto Alegre, e o IPCA, com cobertura nacional e calculado pelo IBGE, apresentaram inflação acumulada nos 12 meses encerrados em março de, respectivamente, 8,22% e 6,1%, resultados superiores ao período anterior à pandemia.

A recente divulgação do IPCA-15 (prévia do IPCA) para o mês de abril, de 0,60%, apresentou resultado inferior ao do mês anterior, de 0,93%. Existe, assim, desaceleração do crescimento dos preços, entretanto isso não se reflete necessariamente em redução das taxas de inflação. Destaque-se ainda que os principais componentes a afetar os índices de preços são os alimentos e os combustíveis, e que as elevações passaram a se acentuar a partir do segundo semestre de 2020.

O comportamento recente dos índices de preços manifesta tanto os efeitos diretos da crise sanitária provocada pela covid-19 quanto expressa a natureza disfuncional das concepções neoliberais vigentes no Brasil. Inicialmente cabe recordar que a pandemia se apresentou como um choque simultâneo de oferta e de demanda sobre as economias. Esse choque implicou um conjunto de incertezas e inseguranças que resultaram em uma forte retração da atividade econômica a partir de março de 2020. A rápida recuperação da China colaborou para a elevação da demanda e dos preços internacionais de alimentos.

Entre maio de 2020 e março de 2021, ocorreu a elevação de 30% do índice agregado de preços de alimentos – índice divulgado pela Organização para as Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). Tais elevações também foram induzidas por ações de diversos governos em recompor seus estoques reguladores de alimentos em um cenário de indeterminação quanto à duração da pandemia.

Ao garantir a oferta em momentos de escassez e mitigar a volatilidade de preços, estoques de alimentos são estratégicos para a segurança alimentar das populações e adotados por diversos países, com distintos níveis de desenvolvimento. Esse, entretanto, não é o caso do Brasil, que iniciou um processão de depleção de seus estoques em meados de 2016, com vistas a reduzir seus custos de armazenamento. A covid-19 encontrou o país com os menores estoques reguladores em uma década, tornando o mercado de grãos mais exposto a choques de preços no curto prazo. No limite, quem arca com tais custos não é o erário público, mas, sim, a população cuja participação da alimentação na renda é mais elevada.

De forma análoga comportaram-se os preços do petróleo, que também apresentaram forte elevação após a queda acentuada que se observou entre março e abril do ano passado. No caso dos combustíveis, o que se observou foi, sobretudo, uma transmissão da volatilidade dos preços externos para os consumidores domésticos, associada à ânsia pelo pagamento de dividendos aos acionistas da Petrobras e à venda de ativos da companhia. É verdade que o estrito controle dos preços por parte da Petrobras se constitui erro, como observado em 2014, porém também é verdade que a transmissão continua das flutuações de preços para os consumidores em um contexto como o da pandemia é um equívoco.

Ainda assim o recrudescimento inflacionário não derivou exclusivamente do fiscalismo vulgar presente nas políticas neoliberais e das estratégias de “geração de valor ao acionista”, acima descritas. Também colaboraram muito os arraigados hábitos mentais impregnados pelos mantras do neoliberalismo, que insistem em tomar a política monetária como a única resposta de política econômica possível em qualquer contexto, ao mesmo tempo em que ignoram as alternativas de política fiscal. Desse modo, observaram-se duas agressivas reduções da taxa de juros nos meses de junho e agosto de 2020 por parte do Banco Central do Brasil.

O resultado foi um processo de elevação da volatilidade no mercado cambial, combinada com forte e persistente depreciação do real, na contramão do observado em economias de perfil semelhante ao do Brasil, que apresentaram revalorização de suas moedas perante o dólar durante o período de recuperação dos preços das commodities. A interação entre os preços internacionais em elevação e o real em depreciação constituiu-se mecanismo central para a elevação da inflação do período. A dinâmica do mercado internacional comprador e a taxa de câmbio elevaram a rentabilidade das exportações brasileiras, e ao mercado interno coube a absorção da elevação de preços mesmo em um contexto de contração da demanda agregada e crescimento do desemprego.

Alguns analistas insistem em debitar majoritariamente a elevação dos preços à combinação entre a concessão do auxílio emergencial e as instabilidades associadas ao eventual descumprimento das regras fiscais. No que tange ao “teto de gastos”, é cabal sua natureza disfuncional, que pretende estabilizar a relação que dívida/PIB em um contexto no qual o PIB irá contrair e a dívida terá que necessariamente crescer com vistas a assegurar a manutenção da mínima estabilidade do tecido social. Nesse sentido, caso a correlação de forças sociais implique a adoção de alguma regra fiscal, o adequado é um arranjo que seja consistente com o comportamento cíclico do PIB, permitindo o ajuste da relação dívida/PIB no médio prazo e não atuando no sentido de impedir a recuperação da atividade econômica. Assim, se há algum impacto nas expectativas dos agentes, este não deve ser creditado ao descumprimento da regra fiscal e, sim, à sua própria estrutura disfuncional.

No que se refere ao auxílio emergencial, tratou-se de medida de política fiscal imposta pelo Poder Legislativo e que mitigou a contração do produto. Se é possível que tenha, em alguma medida, operado no sentido de elevar a demanda, não é crível que o efeito tenha sido de alguma maneira mais relevante do que os elementos de custos anteriormente elencados. A magnitude da recessão gerada pela pandemia, o choque na renda da população e mesmo o retorno da insegurança alimentar e da pobreza apontam nesse sentido.

Por fim, constata-se que o Banco Central brasileiro elevou a taxa de juros recentemente, indicando que, como sempre, a realidade se impõe. Esse movimento tende a estabilizar a taxa de câmbio e, caso articulado com a melhoria na gestão da pandemia pela União, pode permitir um melhor controle dos canais de transmissão dos preços internacionais para a economia doméstica.

Há, entretanto, que se ter cautela com as projeções, dada a crise política permanente vivida pelo país, as limitadas capacidades na gestão da pandemia demonstradas pelo executivo federal até o momento e as desencontradas declarações e estratégias da equipe econômica. O cenário repleto de instabilidades irá persistir ao longo de 2021 no Brasil.

(*) Alessandro Donadio Miebach é  professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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