Parece resistência, mas é conservadorismo
A universidade é um dos espaços em que se manifestam os conflitos e se afirmam os valores de uma sociedade. Os jovens ingressantes trazem o sempre renovado desejo de, pela aquisição do conhecimento, estruturarem projetos pessoais que afirmarão suas individualidades e deixarão suas marcas no mundo. Além de consolidar sua individualidade, os jovens também encontram na universidade um local onde essa identidade poderá se desenvolver em ressonância com a coletividade que chamamos de sociedade. Por outro lado, os professores que entrarão em contato direto com esse público efervescente têm uma missão bastante diferente: precisam conservar e transmitir o conhecimento acumulado pela humanidade, ao mesmo tempo que precisam criticar e superar esse mesmo conhecimento, a fim de que se transforme e se aprofunde. Ou seja, os professores são os responsáveis tanto pela sua preservação quanto pela sua obsolescência, são guardiões da tradição e conspiradores revolucionários.
A posição dúbia entre o conservadorismo do culto ao conhecimento e o progressivismo de quem tem o dever de superar o saber do presente é o drama e o prazer da pesquisa acadêmica. Esse contexto de permanente tensão entre professores e alunos agrava-se no momento político e social vivido no Brasil, em que grupos marginalizados encaram a instrução superior como um degrau a ser galgado não apenas para o desenvolvimento pessoal, mas, sobretudo, para a ascensão econômica e social.
É neste ambiente complexo que lemos o depoimento de Benamê Kanu Almudras (publicado na Revista Piauí 172, de janeiro de 2021, e retrucado na edição de março por Leonardo Monasterio). Pseudônimo de um professor de uma universidade pública paulista, o autor nos dá um relato bastante curioso de nossa cena acadêmica no artigo intitulado “Parece revolução, mas é só neoliberalismo”. É interessante que adotar um pseudônimo para evitar críticas, perseguições ou cancelamentos revela algo profundo do nosso tempo.
Ele, ou ela, retrata conflitos entre docentes e discentes, observando que os estudantes adotam perante os docentes responsáveis por seus cursos uma atitude semelhante ao comportamento de clientes de serviços comerciais, como magazines e operadoras de telefonia. Estão dispostos a exigir, portanto, o que consideram seus direitos junto ao prestador de serviço da instrução superior, ou seja, o docente. Quando se sentem contrariados, os alunos exigem de maneira caprichosa que suas demandas sejam atendidas e tratam os docentes, na palavra de professor Benamê, como serviçais privados. O professor identifica esse comportamento dos alunos como uma manifestação da ideologia neoliberal que assola nossa sociedade, molda nossos comportamentos e mercantiliza as relações humanas, esvaziando o seu significado.
O professor Benamê coloca-se, então, como um verdadeiro soldado e, para resistir à invasão dessa horda consumista, agarra-se aos cânones da prática acadêmica consagrados pelo cultivo da virtude intelectual. Em todo caso, o professor Benamê está consciente das dificuldades inerentes ao seu combate e salienta as ameaças que se levantam contra a sua missão quase quixotesca de enfrentar, com seus parcos recursos de servidor público sucateado, o exército de gigantes arregimentado por um capitalismo que triunfou com o ocaso da história.
A situação não é nem tão dramática, nem tão simples quanto possa parecer. A microfísica das relações entre professores e alunos é apenas uma cena dentro do vasto palco em que se encena um rol de conflitos apresentados no teatro da sociedade brasileira. Os exemplos trazidos, em que vemos alunos imaturos e mimados lutando pela obtenção de seus diplomas pelo custo intelectual mínimo, enquanto o professor luta pela manutenção da excelência acadêmica, nada mais são que um simulacro que oculta um movimento subterrâneo cuja origem está fora do alcance visual da nossa torre de marfim universitária.
Na última década, nossa sociedade se esforçou para ampliar o acesso à universidade. Esse esforço se concretizou, seja pela expansão numérica das vagas, seja pela adoção de medidas que facilitaram o acesso de grupos marginalizados, como pessoas pobres, negras e indígenas, por meio da reserva de algumas vagas pelo mecanismo de cotas. Todos queremos uma universidade que atenda a todo o povo brasileiro, em toda a sua complexidade, com todas as suas cores e sotaques, assim como gostaríamos de ver uma maior presença de alunos estrangeiros enriquecendo nossa cultura intelectual pelo compartilhamento de experiências. A satisfação desse desejo tem, porém, os seus riscos e seus custos. Ao ingressarem nas universidades, os grupos historicamente excluídos encontraram um grupo social alojado que se sentia bastante à vontade em nossa universidade, desproporcionalmente frequentada pelas classes média e média alta.
Ao possibilitar a convivência igualitária entre grupos que normalmente somente entrariam em contato de forma hierárquica, o ensino superior provocou a emergência de conflitos sociais latentes, e esta é a raiz do problema apontado por Benamê. O discurso da inclusão esconde o esforço envolvido no processo de convivência entre estratos distintos da sociedade. Deixando de lado as reações existentes no interior do corpo discente, vejamos a outra ponta, em que a complexidade da sociedade ainda não se manifesta com muita clareza: o corpo docente.
O professorado precisa agora lidar com esse corpo complexo e efervescente com as ferramentas limitadas de que dispõe. As mais poderosas delas são os critérios de exigência acadêmica, a maioria deles bastante tradicionais e vulneráveis à crítica. Podemos entender que o conhecimento envelheceu porque a complexidade da sociedade invadiu a universidade? Ou que o conhecimento necessário àquele grupo que tradicionalmente frequentava as aulas é diferente do conhecimento demandado pelo novo grupo que agora ocupa as salas de aula? A resposta pode estar na abertura ao diálogo.
Num tempo não muito distante, professores e alunos eram oriundos da mesma classe social, com os mesmos hábitos culturais e morais. Na atual circunstância, isso já não vale. A fim de sobreviver ao naufrágio da antiga universidade, o professor Benamê agarra-se à tábua do mérito e da hierarquia acadêmicos como mecanismo de controle. Já os alunos esperam a chegada da nova universidade nos botes salva-vidas dos valores difundidos pela imprensa e pelas redes sociais, onde imperam as leis do individualismo, do consumismo e da competição. Esses valores constituem o oceano do neoliberalismo em que flutuam professores e alunos. E por que estariam nas mesmas águas professores e alunos? Não estaria nosso docente num outro plano, talvez numa ilha, observando de uma terra firme a chegada de seus invasores, tal como os tupis divisaram as caravelas portuguesas que traziam a ruína de sua civilização? Não.
Algo une professores e alunos num mesmo mar ideológico. Ao clamar pelo mérito e pela hierarquia, o professor se coloca na mesma altura ideológica dos alunos. Às exigências de qualidade feitas por estes, supostamente bestializados pelo empreendedorismo de precarizados divulgado pelo noticiário econômico, balizadas por ”métricas” justificadas pela lógica empresarial, o professor opõe-se com outro elemento da mesmíssima matriz ideológica neoliberal: a meritocracia. Contra o apetite desenfreado por mercadorias intelectuais industrializadas e descartáveis, a frugalidade comedida dos produtos duráveis fruto da erudição artesanal. Para finalizar sua construção, o professor Benamê aplica o velho e autoritário truque do carteiraço, ao afirmar que não pode ser tratado como um serviçal do setor privado, mas como um servidor público titulado e merecedor de respeito.
No final do quadro, vemos dois lados que combatem como duas facções de um espectro igualmente conservador: os estudantes educados num caldo de cultura envenenado, onde o diálogo está interditado, e que buscam no formalismo das reclamações de serviços de teleatendimento a etiqueta para manifestar seus anseios e ocultar muitas vezes suas limitações. Os professores, formados sob a égide do elitismo e do rigor dogmático, encontram na meritocracia uma ideologia capaz de estabelecer uma relação política com seu público, na qual eles estariam na posição dominante. Ambos se encontram, por fim, controlados pelos mesmos esquemas de pensamento reacionário e encontram no neoliberalismo a maneira de estabelecerem um canal direto e eficiente de comunicação. De um lado, um público consumidor que enxerga no ensino superior um serviço que deve ser formatado segundo exigências mercadológicas; do outro, um prestador de serviço que imagina ocupar uma posição de poder devida ao merecimento. À primeira vista, parece um conflito que prenuncia um movimento de alcance revolucionário. Mas se trata de uma ilusão: é apenas uma instância de acomodação dos conflitos e complexidades, visando à manutenção da ordem, tal como ela historicamente se apresenta.
(*) Sergio Giardino é professor do Departamento de Matemática Pura e Aplicada da UFRGS