Podcasts feitos por robôs e outros impactos da IA no jornalismo
Alguns dias atrás eu recebi uma mensagem incrivelmente assustadora — ou “assustadoramente incrível”, talvez seja a melhor maneira de descrevê-la — no meu WhatsApp. Era um arquivo áudio, em inglês, com o que parecia ser o mais recente episódio de um podcast chamado Deep Dive (Mergulho Profundo), com pouco mais de dez minutos de duração.
Nele, dois locutores — um homem e uma mulher — conversavam sobre um estudo científico que acabara de ser publicado por pesquisadores brasileiros na revista Global Change Biology, descrevendo como a extinção de determinadas espécies de coral poderia impactar diferentes populações de peixes em ecossistemas marinhos do Brasil. A mulher fazia o papel de entrevistadora curiosa, enquanto o homem se colocava como um especialista, explicando as conclusões, metodologias e implicações do estudo. Tudo de forma muito leve, objetiva e bem-humorada.
Minha primeira impressão foi de que a conversa estava teatral demais — claramente os apresentadores estavam lendo as falas de um roteiro pré-definido e encenando suas reações de espanto e admiração ao que era dito. Ou seja, não era uma conversa espontânea. Mas o roteiro estava muito bom! Tinha uma estrutura narrativa bem construída e explicava muito bem a pesquisa. Confesso que até bateu uma pontinha de inveja, pois eu queria já ter feito uma matéria sobre esse estudo, mas não tinha tido tempo para isso ainda.
Só depois eu descobri que estava sentindo inveja de uma máquina. O suposto podcast, na verdade, tinha sido feito 100% por inteligência artificial (IA), usando uma ferramenta chamada NotebookLM, lançada recentemente pelo Google. As pessoas que narram o podcast não existem — são vozes sintéticas de um além digital — e o roteiro foi escrito em segundos por um robô, tomando apenas o PDF do artigo científico como referência.
Um pesquisador que não participou do trabalho, mas é amigo dos autores, fez o podcast como um experimento, só para testar as capacidades da nova ferramenta. O resultado foi impressionante. Ele simplesmente fez o upload do artigo científico na plataforma e a IA fez o resto. Todo o resto! Em menos de dois minutos, o podcast estava pronto.
Assim como quase tudo envolvendo inteligências artificiais, é um resultado simultaneamente incrível e assustador. Ainda que o diálogo tenha ficado um tanto teatral e haja algumas distorções nas vozes, ele é extremamente crível e imagino que a maioria das pessoas o interpretariam como uma conversa real, entre duas pessoas reais, se ele viesse a ser publicado. (O arquivo de áudio não trazia nenhum aviso de que se tratava de um conteúdo gerado por IA.)
O mais impressionante era que os locutores virtuais não estavam apenas lendo um texto que explicava corretamente a pesquisa (o que já seria impressionante); eles interagiam ativamente um com o outro, fazendo piadas, rindo, expressando curiosidade, espanto e preocupação. Tudo isso, gerado com base no PDF de um artigo científico, que é um texto de caráter estritamente técnico, sem qualquer estrutura narrativa e totalmente desprovido de emoções.
E o pior (ou melhor, dependendo do ponto de vista) é que o NotebookLM ainda está em versão beta (experimental); ou seja, é uma tecnologia nova, que ainda vai ficar muito mais sofisticada. Por enquanto, só funciona em inglês, mas é claro que também funcionará com outras línguas muito em breve. E certamente haverá outras ferramentas semelhantes, desenvolvidas por outras empresas, que juntas serão capazes de produzir diversos tipos de conteúdo “jornalístico” (entre aspas) num piscar de olhos — textos, podcasts, vídeos, animações, ilustrações, infográficos, etc.
O que isso significa para a divulgação científica e para o jornalismo de uma forma geral? Passei os últimos dias refletindo sobre isso.
Pontos positivos:
A comunicação da ciência será extremamente facilitada. Qualquer pesquisador, laboratório ou instituição científica poderá gerar conteúdos de mídia para divulgar seus trabalhos para a sociedade, sem a necessidade de contratar jornalistas ou profissionais de comunicação para isso — o que pode ser extremamente positivo para universidades e outras instituições públicas de pesquisa que não dispõem dos recursos humanos, financeiros e/ou técnicos necessários para fazer divulgação científica com a escala e a regularidade necessárias.
A boa comunicação com a sociedade é fundamental para o fortalecimento da ciência e das instituições de ensino e pesquisa no Brasil. Nesse sentido, qualquer ferramenta que facilite essa comunicação pode ser vista como algo benéfico. Jornalistas e divulgadores de ciência poderão usar a IA generativa de forma ética e responsável para aumentar sua produtividade e turbinar a produção de conteúdos de qualidade para a sociedade. Por exemplo, utilizando a IA como uma ferramenta de apoio para entender pesquisas científicas complexas, organizar informações ou produzir rascunhos de roteiros para vídeos e podcasts — porém, sem abrir mão do controle (e da responsabilidade) sobre o conteúdo final.
Pontos negativos:
O mercado profissional de jornalismo, já muito reduzido e mal pago em relação ao que era duas ou três décadas atrás (quando eu entrei na profissão e trabalhei quase 20 anos como repórter de ciência do jornal O Estado de S. Paulo) deverá encolher ainda mais. As redações vão ficar ainda mais enxutas e muitos jornalistas perderão seus empregos e/ou deixarão de ser empregados. Afinal de contas, por que contratar um jornalista humano para ler estudos científicos e produzir podcasts ou escrever reportagens se um robô é capaz de fazer esse mesmo trabalho em questão de segundos, a um custo incrivelmente menor? Além disso, se a IA consegue gerar um podcast sobre um estudo científico de alta complexidade, imagine o que é capaz de fazer com um jogo de futebol, uma coletiva de imprensa, um debate eleitoral ou um projeto de lei? Moleza!
Várias das tarefas mais básicas do jornalismo poderão ser feitas por robôs. Todos os ecossistemas de comunicação digital dos quais dependemos para nos informar — incluindo aí internet, redes sociais, aplicativos de mensagens, plataformas de áudio e vídeo —serão inundados por conteúdos produzidos por inteligência artificial, sem que as pessoas tenham a capacidade, ou mesmo a possibilidade, de identificar a origem “sintética” desse material. As mesmas ferramentas que estarão a serviço do bom jornalismo poderão ser (e certamente serão) usadas para turbinar a produção em massa de conteúdos falsos, extremamente sofisticados e com altíssimo poder de convencimento, em todos os formatos de mídia, agravando ainda mais a já gravíssima crise de desinformação e negacionismo da realidade (não apenas da ciência) que permeia a sociedade moderna.
Reflexões:
O jornalismo não vai desaparecer. Os jornalistas não serão todos substituídos por máquinas — mas uma parte deles, muito provavelmente, será, e temos que estar preparados para lidar com as consequências disso para toda a sociedade. O jornalismo é peça fundamental na estrutura do estado democrático de direito, indispensável à promoção do debate público e à sustentação da democracia. Sendo assim, qualquer tecnologia que altere de forma significativa a prática jornalística precisa ser analisada e empregada com o máximo de cuidado possível.
Não estamos falando apenas de empregos, mas da maneira como informações são coletadas, analisadas e transmitidas em grande escala para a sociedade. É uma boa ideia que grande parte desse processo passe a ser feito por máquinas? Mesmo que o conteúdo esteja tecnicamente correto?
Sim, é verdade que a IA poderá turbinar a produção de conteúdos informativos. Todos os dias são publicadas milhares de pesquisas científicas e são realizados milhares de eventos, debates, palestras e seminários que não são noticiados pela imprensa porque simplesmente não há jornalistas suficientes no mundo para cobrir tudo isso. A inteligência artificial abre a possibilidade de qualquer pessoa pegar o texto de uma pesquisa ou o vídeo de um seminário de cinco horas no YouTube e transformar isso numa “notícia” em poucos segundos. Será que isso é uma boa ideia? Será que a sociedade estará mais bem informada em função disso?
Não necessariamente. Informação não é sinônimo de conhecimento, e mais informações não se traduzem de modo automático em mais sabedoria. Se fosse assim, estaríamos vivendo um momento de iluminismo progressista e não de obscurantismo retrógrado. Nunca foi tão fácil se comunicar, nunca houve tanta informação disponível para a sociedade e, apesar disso, vivemos um período de polarização extrema, em que as pessoas parecem cada vez mais alienadas, divididas e incapazes de dialogar umas com as outras. Nunca houve tanta informação, mas também nunca houve tanta desinformação.
Será que simplesmente injetar mais conteúdo num ecossistema já sobrecarregado e superpoluído de informações vai melhorar a situação? Para aqueles que têm um desejo real e sincero de se informar, e buscam ativamente informações de qualidade, é possível que sim. Para fins de divulgação científica, onde ainda há uma carência de conteúdo disponível em português, é possível que sim. Mas para muitas outras áreas, não.
Felizmente, há muitos aspectos fundamentais do bom jornalismo que jamais poderão ser reproduzidos por máquinas. A IA jamais poderá relatar a emoção de participar de uma expedição científica na Amazônia, caminhar ao lado de brigadistas numa floresta em chamas, conversar com vítimas de guerra em meio aos escombros de um hospital bombardeado ou colher informações de bastidor nos corredores do Congresso em Brasília, por exemplo. A dúvida é: será que esse bom jornalismo, feito por seres humanos de verdade, continuará sendo economicamente viável (e valorizado) num futuro dominado pela IA?
(*) Herton Escobar, jornalista especializado em Ciência e Meio Ambiente e repórter especial do “Jornal da USP”.