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Por uma educação com base em energia

Augusto Hauber Gameiro / Jornal da USP (*) | 08/04/2023 13:30

E se pensássemos em qual é a base de tudo o que existe (e que se tem conhecimento até então)? Encontraríamos energia. Ela, inclusive, é que forma a matéria, portanto, todas as coisas físicas de que se tem conhecimento, inclusive nossos próprios corpos. Agora, e se buscássemos uma educação que nos ajudasse a compreender tudo o que existe, como tudo é organizado e se relaciona entre si? Chegaríamos então em uma “educação com base em energia”, ou uma “educação em energia”.

O professor Howard Thomas Odum Howard (1924-2002) fez essa proposta diversas vezes ao logo de sua vida e foi pouco ouvido. Ele é o principal responsável por uma importante e crescente área do conhecimento que atualmente chamamos de “síntese em emergia” (“emergia” com “m” mesmo, em alusão à uma “memória energética”; ou, mais fielmente, eMbodied energy).

Em 1971 o prof. HT Odum, como era chamado, publicou seu primeiro livro solo: Environment, power and society (Ed. John Wiley & Sons). Já no primeiro capítulo ele fala da necessidade de que a sociedade humana desenvolvesse uma educação baseada em energia, pelo fato de que energia é a base de tudo.

Essa recomendação não significava que as pessoas tinham simplesmente que estudar energia (atualmente, alunos de Física estudam energia!), mas, sim, que todo o sistema educacional, ou seja, todas as áreas do conhecimento deveriam considerar a energia como uma espécie de unidade básica de análise. Ele não escreveu isso literalmente, mas a recomendação é bastante clara em diversos de seus textos.

Antes que colegas das áreas de humanas interrompam sua leitura, é importante explicar que a recomendação de Odum não implicava na desconsideração de outras ciências, mas sim apenas sugeria a revisão na forma de se conceber o mundo. Também não podemos atribuir a ele um positivismo raiz ou qualquer coisa parecida. Muitíssimo pelo contrário, durante todo desenvolvimento de sua carreira, Odum falava de política, de organização social, de relacionamento humano e, em última análise, de bem-estar da nossa espécie. Ele, inclusive, é considerado por muitos como um dos “pais” da economia ecológica, dividindo essa paternidade com Nicholas Georgescu-Roegen.

Odum parte sempre do fato de que há uma auto-organização em todos os sistemas, sejam eles em níveis “micro”, como uma célula; sejam eles em níveis “macro”, como em um país ou mesmo em um planeta. A compreensão de qualquer um desses sistemas partiria, portanto, da sua configuração energética. Particularmente nos chamados “sistemas humanos”, surgem componentes interessantes, ou seja, “tipos de energia” como a linguagem, a informação e o próprio dinheiro. Observamos, portanto, que energia extrapola uma concepção eminentemente física, como geralmente estamos acostumados a pensar.

Com a frase “Nós estudamos o homem e a natureza a partir da energia disponível dos sistemas ecológicos”, Odum deixa clara a importância da visão sistêmica – inspirada principalmente pelos trabalhos de Karl Ludwig von Bertalanffy. Para Odum, as criações humanas como ética, moral, religião e a própria psicologia social não consequências dos esforços humanos organizados em grupos com o objetivo para sobreviver e aproveitar da melhor forma a energia disponível nos diferentes sistemas ecológicos.

Originalmente, a energia que se tinha disponível era a solar, que é extremamente dispersa e indisponível para uso direto pela nossa espécie. Daí o papel dos vegetais em concentrar essa energia por meio da fotossíntese, dos animais em consumir esses vegetais (que Odum sempre chama de “produtores”) e finalmente do homem, ao consumir vegetais e animais. As mais diferentes sociedades em todos os locais do mundo se organizaram para isso ao longo de sua evolução. Em síntese: o nível de produção e consumo de qualquer sociedade é dado pela disponibilidade de energia que adentra a essa sociedade e que ela é capaz de manipular em função de sua organização, para atender suas necessidades.

Com o passar do tempo, outras fontes de energia foram descobertas e utilizadas pelos seres humanos. O caso dos combustíveis fósseis (carvão e petróleo, principalmente) é o que mais se destaca. A descoberta dessas fontes de energia alavancou em muitas vezes a capacidade do homem transformar a natureza a seu favor. Todavia, nem sempre lembramos que essas energias foram formadas no decorrer de centena de milhares de anos e que as consumimos em frações de segundo. A velocidade de consumo é muitas vezes maior que a da produção, o que nos leva à fácil conclusão da insustentabilidade dos sistemas de produção humanos na contemporaneidade. A grande parte da sociedade humana mundial sobrevive do consumo de algo que tem dia para acabar e que não pode ser produzido no tempo necessário. Por esse motivo, que os cientistas sérios – como era o caso do prof. Odum – evitam falar de que determinada produção é “sustentável”. Raríssimas são. A palavra “sustentabilidade” foi banalizada pela sociedade humana.

Peguemos o caso da produção agropecuária e agroindustrial, pele proximidade que temos com ela. Nos diz o prof. Odum: “Os sistemas modernos de alta produtividade agrícola só são possíveis em função de equipamentos, químicos, variedades melhoradas e muito serviço especializado, tudo em cima de uma economia baseada em combustíveis fósseis”. Só essa frase nos impediria de dizer – como muitos dizem – que “o agronegócio brasileiro é o mais sustentável do mundo”.

Falemos um pouco agora sobre impacto ambiental. Em 1971, quando o prof. Odum publicou seu primeiro livro, praticamente não se falava em problema ambiental (note-se que o famoso relatório do “Clube de Roma” – que deu maior visibilidade ao tema – é de 1972). Mas ele já apontava para os riscos que a economia mundial, em especial a norte-americana, onde ele se encontrava, estava correndo.

Podemos sugerir, de forma bastante prática e didática, que “poluição é energia no lugar errado”. Ou seja, ao falarmos de poluição, de impacto ambiental, nada mais estamos fazendo do que falar de energia ou dou seu mau uso, para sermos mais específico. Em outras palavras, a energia é a melhor “medida” de impacto ambiental.

Falemos brevemente de bem-estar humano. É conhecido há muito que um ser humano tem necessidades energéticas diárias sem as quais não sobrevive ou não tem qualidade de vida. Em outras palavras, nós temos como quantificar objetivamente o mínimo que precisamos para sobreviver com qualidade todos os dias. Também temos como saber, com a mesma facilidade, o quanto nossos sistemas produtivos conseguem gerar de energia. Será que a energia disponível tem capacidade de atender à demandada? Como é a distribuição dessa energia entre a população?

Dados recentes mostram que quase 60% da população brasileira tem algum grau de insegurança alimentar. Isso, em um país que clama pelo título de “celeiro do mundo”. Uma análise energética básica é capaz de nos mostrar que o celeiro está cheio, mas não para nossa população, porque ela simplesmente não tem “energia financeira” para acessar o que está dentro deles. Grande parte da energia produzida alimenta pessoas que tem essa “energia financeira” em outros países e que podem pagar por ela.

E assim sucessivamente.

Se tivéssemos um sistema educacional que olhasse para esse “denominador comum” de tudo que há, será que não estaríamos mais preparados para entender o que é impacto ambiental de fato? Ao invés de continuarmos negando que ele existe? Será que não compreenderíamos de forma mais fácil que precisamos utilizar outras fontes de energia (renováveis)? Será que não pararíamos de falar bobagem sobre a “sustentabilidade” dos nossos sistemas produtivos? Será que não ficaria ainda mais evidente que há pessoas que não têm acesso ao mínimo para sobreviver? E que estamos lhes suprimindo o direito básico à vida?

Talvez o conhecimento sobre energia possa se tornar uma linguagem universal, de todos os povos, de todos os cantos. Talvez possa melhor nos iluminar. Talvez possa nos ajudar a entender melhor as crises pelas quais passamos, os erros que continuamos insistindo em reproduzir.

Espero que a comunidade científica, de todas as áreas – naturais, exatas, humanas –, desperte para a necessidade de construção de uma forma de comunicação, entendimento e educação mais holística e que transite entre os diferentes saberes. Talvez possa ser por via da energia. Talvez o prof. Odum estivesse certo. Particularmente, eu acredito nisso, pelo menos como uma alternativa muito bem fundamentada cientificamente.

(*) Augusto Hauber Gameiro é professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP.

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