Por uma ética da conservação em museus
O sociólogo alemão Ulrich Beck, em sua notória obra “Sociedade de risco” (1986) nos provoca a pensar em uma nova modernidade, em que, nas sociedades, a partir da segunda metade do século XX, os riscos são compartilhados. Ele grifa que “A sociedade de risco é uma sociedade catastrófica. Nela, o estado de exceção ameaça converter-se em normalidade”.
No âmbito do patrimônio cultural, referindo-me, aqui, ao contexto museológico especificamente, há uma ênfase na destinação de recursos para o que é visível, ou seja, para projetos expográficos e educativos. Definir planos e protocolos; realizar, de modo sistemático e ordenado a higienização mecânica dos objetos, assim como as pesquisas avançadas, que demandam um tempo maior para compreensão do comportamento dos materiais e suas condições de guarda e exposição, podem ser vistos como ações “invisíveis” e, por isso, tornam-se invisibilizadas.
Vem-se construindo um olhar aprimorado para a gestão de acervos (o âmbito museográfico), no qual se localizam a documentação e a conservação, entretanto há muito a avançar, especialmente se pensarmos na implantação de uma lógica de planejamento em nossos museus (e em nossa sociedade).
Se elaborarmos plano de segurança (com definição de rotinas e protocolos); plano contra infestação de pragas; estudos de gerenciamento de riscos e plano de emergência – identificando responsabilidades, formas de evacuação e locais para retirada de acervos de seus locais de guarda e exposição, assim que houver alertas da Defesa Civil – contribuiremos para a sustentabilidade dessas instituições, reduzindo impactos de toda ordem.
Neste período de calamidade, nós, profissionais do patrimônio cultural, ouvimos, com frequência, solicitações como “dar dicas de restauração”. Cabe salientar, no âmbito da ética da conservação, de que a restauração ou conservação reparadora é um fazer próprio do profissional graduado (e pós-graduado) em Conservação-Restauração. Museólogos e mesmo arquivistas e bibliotecários não restauram, ou seja, não possuem conhecimento científico para intervir diretamente nos objetos.
A atuação desses profissionais se dá na Conservação Preventiva, que é um campo vastíssimo e primordial em acervos, o qual se encontra no cerne da ética da atuação junto a acervos. A intervenção é feita por aquele profissional que possui competência para isso. A analogia entre conservadores-restauradores e médicos é adequada se pensarmos que estes últimos, os médicos, não são cobrados a darem “dicas” de como realizar uma cirurgia, pois ela deverá ser feita, quando necessário, após diagnóstico, por um profissional da área e em local apropriado.
Acerca das ações de conservação curativa, as quais buscam estabilizar ou estancar um processo de degradação, novamente, devem ser orientadas por conservadores-restauradores. São esses profissionais que, especializados em determinados materiais e técnicas (como pintura de cavalete, madeira, papel, vitrais e outros), saberão realizar um diagnóstico e um laudo adequados aos objetos em questão.
Uma intervenção malfeita poderá gerar não apenas a descaracterização dos bens culturais – ou seja, a perda de valor (cultural, histórico, artístico, científico) – como o risco de uma degradação severa e irreversível. A reversibilidade é um princípio das ações no campo do patrimônio, a qual está hierarquicamente antecedida pela ética, ambas dispostas em documentos deontológicos internacionais.
Foi a inundação de Florença, em 1966, que nos exigiu uma postura proativa frente aos acervos, fortalecendo algo que já vinha sendo abordado no contexto inglês, sobre a necessidade de observar e acompanhar metodologicamente clima (sobretudo a umidade relativa), luz e poluentes nos locais com acervos. Garry Thomson e H.J. Plenderleith publicaram os primeiros textos, nos anos 1950, acerca da ação desses agentes, salientando também para a negligência em museus (ou seja, falha na ação antrópica). Thomson bem pontua que o mau restaurador pode destruir um objeto, porém o mau conservador poderá destruir toda uma coleção.
Gael de Guichen, em 1995, fala-nos que: “Onde ontem se viam objetos, hoje devem ser vistas coleções. Onde se viam depósitos devem ser vistos edifícios. Onde se pensava em dias, agora se deve pensar em anos. Onde se via uma pessoa, devem ser vistas equipes. Onde se via uma despesa de curto prazo, se deve ver um investimento de longo prazo. Onde se mostram ações cotidianas, devem ser vistos programas e prioridades”.
Eis que o planejamento está instado na gênese da Conservação Preventiva, a qual se coloca como um conjunto técnico-científico (portanto, metodológico) de ações indiretas sobre as coleções, que implica todos os profissionais do patrimônio cultural.
Pois a ética na conservação não se refere apenas à identificação dos limites de atuação dos profissionais, as competências de cada sujeito, sendo eles: conservadores-restauradores; museólogos, arquivistas e bibliotecários, bem como químicos, físico-químicos e engenheiros de materiais.
Na gestão de acervos, a ética se refere a implementar uma cultura de planejamento em instituições museológicas, a qual viabilizará uma gestão sustentável e, assim, distante do estado de exceção.
A falta de uma cultura do planejamento em instituições com acervos está saindo muito caro para toda a sociedade, como estamos vivenciando nesta tragédia climática no Rio Grande do Sul. O patrimônio cultural musealizado nos possibilita construir identidades e produzir conhecimento sobre nossa trajetória social (e como humanidade). É uma forma altamente elaborada e, ao mesmo tempo, em linguagem universal – por meio de objetos e imagens (visuais, textuais e sonoras) – que nos colocamos diante da nossa transformação como sociedade.
(*) Jeniffer Cuty é professora do departamento de Ciências da Informação da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação.
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