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Reconectando pela Neurociência

Eliane Comoli (*) | 22/01/2023 13:30

Oser humano tem uma grande capacidade de adaptação ao mundo graças à habilidade extraordinária que o cérebro tem de moldar-se mediante as diferentes demandas do dia a dia. Tudo o que fazemos e aprendemos é capaz de modificar os circuitos neurais já estabelecidos e formar novas conexões. É justamente o mecanismo chamado neuroplasticidade ou plasticidade neural que permite ao cérebro modificar-se constantemente e manter-se continuamente em atualização e preparação para eventos futuros. As experiências vividas diariamente induzem à neuroplasticidade permitindo que o cérebro interaja de maneira permanente com o ambiente, armazenando os resultados aprendidos na forma de memórias. Isso torna o cérebro um dos órgãos mais interessantes. Os avanços conceituais dos últimos 60 anos que demonstram um papel ativo da neuroplasticidade tanto nas mudanças na conectividade neural como no controle e mudança do comportamento foram publicados na revista científica Journal of Neurochemistry.

Um dos maiores desafios da neurociência é compreender os sistemas neurais responsáveis pelas emoções e comportamentos, bem como pelos níveis mais elevados de atividade mental humana, como a consciência, tomada de decisão, imaginação e linguagem. Entretanto, a neurociência tem apontado caminhos para uma melhora substancial nas funções cognitivas, em particular na capacidade de aprender e de usar o conhecimento como uma ferramenta poderosa de desenvolvimento individual e da sociedade. Não há dúvidas que nascemos para aprender e criar. O aprendizado está relacionado não somente ao melhor desempenho acadêmico, mas sobretudo a melhores condições de vida, de satisfação pessoal, de sucesso econômico e de avanço social.

Interesses e curiosidades sobre assuntos de neurociência costumam ser muito comuns entre as pessoas em geral porque são assuntos que podem ser muito facilmente aproximados do cotidiano das pessoas. As emoções, por exemplo, são uma das características essenciais da experiência humana e funcionam como ferramentas adaptativas e indispensáveis nas diversas relações com o meio ambiente e no convívio social, fundamentais no processo de aprendizagem e formação de memórias duradouras. Além do mais a memória é um processo de caráter essencial na aprendizagem e é nela que está depositada a nossa identidade.

Nessa perspectiva, a neurociência funciona como um instrumento que permite entender um pouco de quem somos, como sentimos, como nos movimentamos, como pensamos, como aprendemos e como nos comportamos. Foi nesse contexto que surgiu o projeto Reconectando pela Neurociência, que propõe iniciativas de enfrentamento ao baixo engajamento escolar entre adolescentes de 12 a 18 anos em cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade (internação) no Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Casa) Cândido Portinari, da Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação Casa) de Ribeirão Preto. O Reconectando pela Neurociência foi idealizado pelo professor Guilherme de Araújo Lucas, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, e reúne um grupo de professores da Universidade em colaboração com a coordenadora pedagógica e das atividades didáticas, desenvolvimento e avaliação das ferramentas didáticas da Casa Cândido Portinari, Juliana Chicani.

O projeto Reconectando pela Neurociência

Dentre as iniciativas do projeto Reconectando pela Neurociência está o desenvolvimento de material didático sobre neurociência fundamentado numa visão integrada do sistema nervoso e baseado nos fenômenos do cotidiano, incluindo a criação de apostilas integradas ao uso de material digital com jogos e desafios relacionados aos dez temas de Neurociência abordados em encontros semanais e cuja finalidade é permitir que o adolescente desenvolva suas habilidades cognitivas, emocionais e sociais pela compreensão do funcionamento do cérebro, como parte central de controle de todas as ações humanas em qualquer contexto, relevantes não somente no ambiente escolar, mas também fora dele. Dentre os temas abordados estão Emoções, Empatia, Escolhas e Efeito de Substâncias como o álcool, o tabaco, a maconha, a cocaína e o craque, que alteram o comportamento, as habilidades de fazer escolhas, a atenção e as emoções. “O que há de mais importante no Reconectando é ensinar alguns conceitos biológicos complexos que façam sentido para as experiências que os adolescentes vivem no cotidiano, para que reconheçam a relação e relevância disso em suas vidas”, comenta Guilherme.

As atividades do Reconectando foram, inicialmente, desenvolvidas através da criação de um material didático adaptado conforme as necessidades e condições de aprendizagem de pequenos grupos de, no máximo, dez adolescentes do Centro Cândido Portinari, sendo modificado para suprir as necessidades de cada grupo. Níveis de dificuldades maiores exigiram atividades mais lúdicas e atrativas, como a inclusão de jogos. Esse modelo foi desenvolvido em total sintonia com o projeto Educação Transformadora do Centro Cândido Portinari da Fundação Casa.

O projeto Educação Transformadora tem uma base teórica muito sólida, apoiada na Teoria de Regulação Social e Pessoal da Conduta Adolescente de Marc Le Blanc – estudioso da Universidade de Montreal, Canadá –, cuja concepção está fundamentada na ideia de que a regulação da conduta se daria por meio de fatores multideterminados transcendendo as instituições responsáveis pela socialização do adolescente, ou seja, a família, a escola, o grupo de pares, as atividades de rotina e os aspectos psicológicos. A escola é uma base importantíssima, pois é através dela que se avança em outras bases como a escola profissional, a arte e a cultura, a fim de proporcionar o desenvolvimento de outras habilidades nesses adolescentes. A escola é o melhor método para atender a tais necessidades, sendo as atividades educativas e pedagógicas empregadas como meio e com finalidade, mesmo quando se trata da atividade artística e criativa.

Através da Educação Transformadora, a Casa Cândido Portinari modificou toda a área escolar para a medida socioeducativa de modo a trabalhar com níveis em condições de aprendizagem – ambiente organizado, seguro, interventivo e com salas multisseriadas. Esse diferencial melhora o acesso ao ensino para o adolescente que não conseguiu o que é preconizado no currículo escolar e que representa um campo de afastamento do meio muito grande e que leva à defasagem e à desadaptação escolar – violação da adaptação da criança às condições escolares, em que há uma diminuição na capacidade de aprender – mais intensificadas, ainda, em função da pandemia do coronavírus.

O Reconectando pela Neurociência é uma tentativa de reconectar os adolescentes com a escola e de resgatar o prazer de enfrentar os desafios de qualquer aprendizagem. Em consonância com a Educação Transformadora, desabrochou como meio de intervenção para o desenvolvimento das habilidades cognitivas, emocionais e sociais. Como parte de atividades do Reconectando foram realizadas: a Oficina de Robótica e a Semana do Cérebro. Na Semana da Robótica, os adolescentes desenvolveram um programa computacional para controlar os movimentos de um carrinho em um trajeto com graus de dificuldades crescentes e cuja meta era construir soluções através de comandos que possibilitassem superar os obstáculos e concluir o percurso do carrinho. As atividades foram desenvolvidas sob orientação da professora Kalinka Castelo Branco, do Instituto de Ciências Matemáticas e Computação (ICMC) da USP. Além da motivação, a robótica foi fundamental para a percepção dos adolescentes de que eles eram capazes de aprender – fator fundamental para diminuir o estresse escolar, melhorar o sentimento de autoestima e a capacidade de aprender – e trouxe reflexos na alfabetização e letramento desses adolescentes.

Na Semana do Cérebro foram desenvolvidas atividades em torno da Neurociência do Cotidiano com o professor Guilherme, que trouxe aspectos gerais da funcionalidade cerebral nas mais diversas situações do dia a dia, como, por exemplo, os mecanismos neurais através dos quais o cérebro permite exercer o controle de habilidades motoras, e que esse controle pode ser aprendido e aperfeiçoado, como ocorre na realização de embaixadinhas ou no desenvolvimento de estratégias motoras para vencer o adversário numa partida de pingue-pongue; da Neurociência e as Sensações, sob minha orientação, que propiciou vivenciar experiências sensoriais envolvendo aromas, gosto, cores, música e toque, bem como aspectos de memórias sensoriais, associativas, afetivas e emoções; e da Neurociência e Artes, oficina de pintura que possibilitou a expressão da criatividade através de desenhos e confecção de neurônios abstratos, juntamente com o professor Norberto Garcia Cairasco, também da FMRP-USP.

As atividades sensoriais e criativas envolvendo aromas, música, desenho, pintura e escultura podem ser consideradas como hobbies relaxantes e gratificantes; auxiliam na diminuição dos níveis de estresse, dando ao cérebro uma importante variação nos padrões de atividades que favorecem o aumento da resiliência psicológica, do bem-estar e melhoram a cognição. Ainda, experiências artísticas como colorir, rabiscar e desenhar podem evocar emoções, pensamentos, sensações de prazer e satisfação, e possibilitar novas formas de pensar.

“A Semana do Cérebro foi um marco importante porque englobou todos os 54 adolescentes do Casa Cândido Portinari. Mostrou que eles aprendem muito mais que a neurociência em si, que eles são capazes de sentir e podem aprender a identificar emoções, saber por que elas existem e por que elas estão presentes num determinado momento; que as coisas não são predeterminadas e que tem um cérebro que nos comanda. Essa experiência foi muito além de passar ou receber conteúdo”, comentou Juliana, da Fundação Casa.

A neurociência desperta os adolescentes para a busca do conhecimento

A coordenadora pedagógica da Casa Cândido Portinari aponta que um primeiro indício de transformação relacionado ao Reconectando pela Neurociência é a demonstração de interesse dos adolescentes pelo material didático e da preocupação de poderem ficar com o material e levá-lo para casa. Outros indicadores de interesse são a ansiedade para chegar o dia das atividades, a atenção e a percepção desenvolvida durante as atividades, como aconteceu durante atividades desenvolvidas por mim. Os adolescentes relataram que após a agitação inicial, relaxaram e perceberam o efeito calmante do som da flauta tibetana em associação com o aroma de algodão e vivenciaram memórias passadas significativas.

Um fator impactante foi a visita de dois adolescentes, em processo de letramento, aos laboratórios do professor Guilherme e meu, no Departamento de Fisiologia da FMRP da USP. Ficamos impressionados que os adolescentes sabiam reconhecer as partes do neurônio e as principais funções do cérebro. Este é um bom indício de capacidade de aprendizagem e de retenção de conhecimento desses adolescentes e revela um grande diferencial para o adolescente que tem desadaptação escolar, portanto passível de ser investido. O ambiente de sala de aula na Cândido Portinari é bastante propício para desenvolver material didático. “Como os adolescentes não têm distratores como celulares na sala de aula, eles estão 100% focados no que é dito, no que é feito e nas interações realizadas. Fica muito evidente a capacidade que eles têm de aprender desde que o material didático seja adequado e que os assuntos discutidos estejam ligados ao cotidiano deles”, salienta Guilherme. A visita à USP provocou interesse de 90% dos demais adolescentes do centro educativo Cândido Portinari, inclusive daqueles que ainda não participavam do Reconectando naquele momento.

Considerando que o videogame é um dos dispositivos tecnológicos mais utilizados por adolescentes e que quando utilizado de forma adequada o jogo digital pode ser uma boa ferramenta no processo de ensino e aprendizagem, o Reconectando está desenvolvendo um jogo digital com a finalidade de estimular o desenvolvimento das capacidades cognitivas e afetivas, em colaboração com a professora Marina Bazon, do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP. Os jogos proporcionam o desenvolvimento do pensamento e concentração, assim, podem influenciar positivamente o desenvolvimento do jovem, que pode aprender a agir melhor em certas situações e exercitar sua capacidade de discernimento e tomada de decisão.

Perspectivas sobre a importância da neurociência na Fundação Casa

A neurociência pode ajudar a “desconstruir ” certas crenças e “construir novos olhares”, sobre si e sobre o outro. Tem um papel fundamental na intervenção socioeducativa trazendo benefícios no cotidiano de todos os envolvidos. Ela consegue indicar que o adolescente em desadaptação escolar tem capacidade de aprender, que o servidor tem condições de fazer uma atividade mais direcionada e que os parceiros também podem direcionar atividades para a Educação Transformadora e Humanizada dos adolescentes da Fundação Casa. “De várias formas, o Reconectando pela Neurociência veio para abrir a porta estreita que existe na questão educacional dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa”, diz Juliana.

O Reconectando pela Neurociência é um grande exemplo de que parcerias com uma instituição como a USP, que produz conhecimento científico, são fundamentais para levar conhecimentos com bases teóricas consolidadas para dentro da medida socioeducativa de forma a sustentar ações interventivas adaptativas. Isso representa um avanço de anos. “Ampliar o Reconectando agregando a matemática, a robótica e as artes será uma enorme oportunidade de, naquele ambiente, fazer com que o adolescente entenda que o que o cérebro mais gosta de fazer é aprender, criar coisas novas e enfrentar pequenos desafios; que quanto melhor ele souber fazer isso, mais sucesso terá nas suas conquistas, no seu bem-estar e do grupo ao qual está inserido”, conclui Guilherme.

O projeto Reconectando pela Neurociência é uma iniciativa de Cultura e Extensão ligada ao projeto de inclusão social e diversidade vinculado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) e recebe fomento da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo.

(*) Eliane Comoli é professora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP.

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