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Reflexões sobre o acesso à água de qualidade e esgoto sanitário em áreas rurais

Danieli Veleda Moura(*) e outros autores (**) | 30/10/2021 08:45

Um dos simpósios realizados em 2020 pelo Centro de Síntese USP Cidades Globais focou no tema: “Desafios da Universalização do Saneamento no contexto do Novo Marco Legal” onde, dentre outras coisas, salientou-se que a questão do “saneamento básico no Brasil é tema de polêmicas e debates entre diferentes esferas de pesquisadores, movimentos sociais e formuladores de políticas públicas”. Destacou-se, também, que “embora seja considerado elemento fundamental para qualidade de vida e melhoria na saúde pública, ainda há milhões de brasileiros”, mais de 35 milhões, “que não têm acesso à água tratada” e “a coleta de esgoto no Brasil encontra-se ausente para quase metade da população”.

Embora o destaque do evento tenha sido problematizar as questões do saneamento nas áreas urbanas, na perspectiva da universalização do acesso é preciso também incluir a dura realidade das áreas rurais em relação ao saneamento básico, particularmente no que se refere ao ODS 6 – acesso à água potável e esgoto sanitário. Infelizmente também apresenta situação precária, como demonstram documentos oficiais e a literatura referente ao tema, revelando um quadro de vulnerabilidade socioambiental da população que aí reside, alertando para as desigualdades a que estes brasileiros estão sujeitos. “[…] não existem informações consolidadas disponibilizadas pelos diversos órgãos atuantes sobre saneamento rural e nem há estimativas confiáveis de demanda pelo serviço no município”.

Diante disto, o objetivo desse ensaio é problematizar a situação das áreas rurais de municípios de pequeno porte quanto ao acesso à água e esgoto sanitário. Mas, para isso, primeiramente se faz necessário esclarecer o que são áreas rurais. À primeira vista esta parece ser uma tarefa fácil, no entanto, na realidade concreta das Ciências Sociais e Humanas, “o uso da categoria ‘rural’ (bem como de suas derivações, tais como ‘campo’, ‘mundo rural’, ‘populações rurais’ ou, ainda, ‘ruralidade’) tem sido, ao longo do tempo, uma questão sempre controversa, delicada e que traz em si um certo desconforto” aos pesquisadores destas áreas do conhecimento que se utilizam de tal conceito “para explicar ou interpretar processos sociais”.

“Partindo da premissa da existência a priori de dois tipos de espaços: o urbano e o rural, cada um com as suas especificidades e diversas faces, a nova ruralidade”, perspectiva teórica aqui adotada, “vem para atualizar tudo aquilo que se falou do rural até então”, ou seja, que ele se constitui num espaço “focado em atividades primárias, ou até mesmo de um espaço que um dia se tornaria urbano, agora, o rural é tratado, assim como o urbano já é, como um território, cheio de atividades diferentes”, com “atores sociais distintos, múltiplo em interesses, em dinâmicas, fluxos e realidades”, destinadas a diferentes atividades e funções que vão do agronegócio, exploração turística ambiental, residência para aposentados, sítios para veraneio a comunidades tradicionais como agricultores familiares, pescadores artesanais, quilombolas e indígenas.

Neste sentido, mais pesquisas precisam direcionar atenção e esforços a estes espaços e às transformações que historicamente sofreram e que os moldaram da forma como hoje se apresentam, isto é, como espaços não homogêneos, constituídos por especificidades que variam de acordo com seus territórios, origem, funções e atividades. Para Abramovay, a revalorização do campo será o grande fenômeno demográfico, social e cultural deste início de milênio, já que são nas regiões mais interioranas que existe biodiversidade, recursos naturais e paisagísticos e, também, um estilo de vida idealizado e desejado por muitos que vivem nas cidades.

Posto isso, algumas problemáticas vêm à tona em relação às áreas rurais. Uma delas é a questão do saneamento básico. O Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) de 2019 reconhece as limitações em avançar de forma mais concreta em proposições específicas para as áreas rurais, recomendando a elaboração de um programa de saneamento rural. Este Programa foi criado por meio da Portaria nº 3.174/2019 e tem a finalidade de articular e incrementar ações que visem à universalização do acesso ao saneamento básico em áreas rurais e comunidades tradicionais, porque como expresso no próprio Plansab: “[…] a atuação do poder público no Brasil difere, em grande medida, entre áreas urbanas e rurais, no que concerne a padrões tecnológicos e de gestão, sendo as áreas rurais, em sua multifuncionalidade e multiplicidade de significados, relegadas a um plano secundário.”

Diante do reconhecimento dessas diferenças, o Plansab 2019 parte da reflexão de que o saneamento para áreas rurais precisa partir “da interpretação de relações socioculturais, políticas e econômicas capazes de refletir o modo de produzir a vida nos territórios” dessas áreas. Para tanto, o Programa Saneamento Brasil Rural do Governo Federal e que está sob a responsabilidade do Ministério da Saúde, por meio da Funasa, pretende beneficiar 39,73 milhões de habitantes, o que corresponde a 21% da população das áreas rurais do país até 2038.

Cabe observar que se a previsão deste atendimento é o ano de 2038, tal prazo cumpre com o estabelecido na Lei nº 14.026/2020, considerada como o novo marco legal do saneamento, mas, repete cronicamente a prática de deixar as áreas rurais em segundo plano, pois atrasa em quase uma década a previsão de universalização da água e esgoto sanitário, objetivo do ODS 06 da Agenda 2030 da ONU. Em vista disso, cabem duas observações: a primeira é a de que, se por um lado um primeiro passo foi dado no sentido de se reconhecer as particularidades da área rural em relação a urbana; por outro, este Programa a ser executado num período de quase duas décadas, atenderá apenas 21% da população rural do Brasil, estando, portanto, muito longe da universalização do acesso à água e esgoto sanitário.

Deve-se observar se estas políticas (planos e programas) realmente sairão do papel, vindo, de fato, a melhorar a qualidade de vida das populações que habitam estas áreas e, consequentemente, diminuindo as desigualdades entre campo e cidade. É preciso destacar que essa realidade das áreas é ainda mais complicada em municípios rurais de pequeno porte, haja vista que, como o próprio Ministério da Saúde adverte: “As populações das áreas rurais e dos pequenos municípios permaneciam, e permanecem, à margem do Estado brasileiro, carecendo de ações e serviços públicos em todas as áreas fundamentais para o desenvolvimento humano: saúde, alimentação, educação, segurança, transporte público, energia, meio ambiente, assistência técnica e extensão rural, e, evidentemente, o saneamento básico”.

Além disso, não é incomum o fato de não se olhar para os municípios de pequeno porte na hora de se desenvolver uma gestão, executando-se nestes locais, não raras vezes, políticas das cidades de médio e grande porte, cuja realidade é bem distinta. Logo, se tratarmos de áreas rurais de municípios de pequeno porte, a situação agrava-se, pois são dois contextos que, historicamente, foram marginalizados, não fazendo parte das prioridades das políticas públicas. E, se tomarmos por base, as políticas de saneamento básico, a situação é ainda mais grave, já que esta não é uma política que tenha sido prioridade no Brasil.

“Os impactos das ações de saneamento básico nas condições de vida da população podem ser avaliados com base em índices de saúde pública, particularmente os epidemiológicos.” A insuficiência de saneamento básico pode gerar uma série de doenças no ser humano, como por exemplo, disenteria bacteriana, cólera, febre amarela, malária, hepatite A, leptospirose e esquistossomose, levando inclusive à morte, principalmente em crianças e idosos. As doenças são transmitidas pelo uso ou ingestão de água contaminada e pelo contato da pele com o solo e resíduos sólidos contaminados.

Diante disso, questiona-se por que razão o acesso à água de qualidade e ao esgoto sanitário ainda são tão precários na zona rural de municípios de pequeno porte? Uma das razões pode ser a grande atribuição de competências que a Lei Complementar 140/2011 vem conferindo aos municípios brasileiros, sem que eles tenham recursos orçamentários e/ou técnicos para exercer tudo aquilo que a eles compete em matéria ambiental. Essa realidade é ainda mais visível em municípios de pequeno porte. Como destaca Machado: “[…] as prefeituras de cerca de 5.000 pequenos municípios brasileiros não podem investir em saneamento básico por falta de recursos, pois dispõem de arrecadação insuficiente, quase irrisória, e muitas dificuldades para administrar o problema, seja por falta de pessoal especializado, ou por desinteresse por parte dos prefeitos e vereadores”.

Outro fator destacado pelo autor supracitado e que pode estar ligado ao problema da universalização da água e esgoto nos municípios de pequeno porte é o desinteresse da própria Administração Pública que, não raras vezes, se preocupa muito mais com políticas que, na visão deles próprios, parece garantir maior permanência no Poder e não, de fato, com a melhoria da qualidade de vida da população que a elegeu. Por conseguinte, analisando a situação do saneamento básico nas áreas rurais brasileiras, é possível constatar que: “[…] quanto menor a renda agregada de seus moradores, maior é o déficit. […] Entre os domicílios com renda agregada inferior a 1 salário-mínimo, os percentuais de ausência de canalização interna sofreram redução entre 2000 e 2010, mas se mantiveram em patamares elevados. Os percentuais de escoadouros de esgoto em fossa rudimentar, e outros destinos inadequados, praticamente não se alteraram entre 2000 e 2010, em todos os estratos de renda; porém, entre os mais pobres, a presença desses tipos de solução é bastante elevada, ao contrário daqueles residentes em domicílios com renda superior a cinco salários-mínimos”.

Aliado a isso, há também particularidades na provisão de serviços adequados às populações rurais e que também podem dificultar a universalização do acesso à água e esgoto adequados em áreas rurais de municípios de pequeno porte. Dentre estas particularidades, cita-se: dispersão geográfica; isolamento político e geográfico das localidades e seu distanciamento das sedes municipais; localização em área de difícil acesso, seja por via terrestre ou fluvial; limitação financeira ou de pessoal, por parte dos municípios, o que dificulta a execução dos serviços voltados para o saneamento; ausência de estratégias que incentivem a participação social e o empoderamento dessas populações; inexistência ou insuficiência de políticas públicas de saneamento rural, nas esferas municipais, estaduais ou federal.

Assim, seja qual for o entrave que dificulta a universalização do acesso à água e esgoto em áreas rurais de municípios de pequeno porte, é fato que a evolução do acesso aos serviços de água e de esgoto não tem seguido no mesmo ritmo em todas as áreas. Santos, Kuwajima e Santana (2020), destacam que as regiões que mais sofrem com o déficit de saneamento básico são aquelas cujas populações são de baixa renda, áreas periféricas urbanas e onde habitam as populações rurais. Embora as dificuldades de investimento nesse setor abranjam todo o país, o meio rural tem sido um verdadeiro desafio, pois apresentam realidades distintas necessitando de “diferentes soluções, sendo que os agentes mais capacitados podem não ser os mesmos em cada caso”.

Como argumenta Machado, “longevidade, alimentação, saúde, […] saneamento básico, esgoto e água potável, são como miragens, sonhos inalcançáveis para quem nasce e vive em condições de extrema pobreza ou miséria”. Neste sentido, pode-se dizer que a falta de água de qualidade e esgoto é reflexo de uma sociedade desigual, onde apesar de ser necessário à qualidade de vida de todos os seres humanos, seu acesso ainda se encontra muito distante de se tornar universal no Brasil porque embora haja leis e acordos internacionais com metas e objetivos condizentes com um desejo de uma sociedade sustentável, ainda se carece muito de condições materiais objetivas para que esta realidade se torne algo concreto.

Logo, é necessário se pensar na implementação de políticas que sejam realmente concretizáveis, levando-se em conta a realidade dos pequenos municípios, a particularidade das áreas rurais, os conflitos e desigualdades inerentes à própria estrutura política e de poder existentes. O conhecimento da realidade e o compromisso político com a transformação desta, pode ser um caminho viável que conduza a redução das desigualdades e da universalização do saneamento básico.

(*)Danieli Veleda Moura É pesquisadora do programa Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

(**) Marcia Leite Borges e Thelmo de Carvalho Teixeira Branco Filho, pesquisadores do programa Cidades Globais do IEA/USP, com supervisão de Tadeu Fabrício Malheiros, professor da Escola de Engenharia de São Carlos, e Maria da Penha Vasconcellos, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP do Cidades Globais USP

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