Transição política e competição tecnológico-militar
O elemento mais relevante do ponto de vista econômico e político no cenário internacional dos últimos 50 anos foi a ascensão da Ásia, em particular, da China, que acabou por confrontar o arranjo internacional estabelecido no pós-Segunda Grande Guerra, com a perda relativa do espaço dos EUA e Europa. Com a decadência da Rússia e Europa, os dois grandes atores atuais são a China e os EUA, mas em um cenário crescentemente multipolar.
A disputa recente mais aguda entre China e EUA tem raízes na percepção de que a China, pela primeira vez em décadas, contesta efetivamente a superioridade econômica e política dos EUA. Note-se que o vertiginoso crescimento econômico da China a partir dos anos de 1970 foi, no início, estimulado pelos EUA, para conter a sempre presente ameaça de conflito com a Rússia no período da Guerra Fria. Dada as históricas diferenças entre Rússia e China, esta estratégia foi entendida como favorável aos EUA.
Os governos Carter e, principalmente, Nixon, abriram as portas do mercado norte-americano para produtos da China. Domesticamente, com Deng Xiaoping, a China passou a buscar os capitais e as tecnologias ocidentais. O capital estrangeiro instalou-se na China com grandes investimentos e acabou transferindo tecnologia de produção e conhecimento gerencial. No início, os produtos chineses apresentavam baixa qualidade e sofisticação. Mas, com o tempo, a China aprendeu a produzir competitivamente e avançou na produção de produtos mais e mais sofisticados, absorvendo a tecnologia state of art e apresentou significativas inovações em numerosos setores industriais, inclusive avançados, como ocorre nas indústrias automobilística e digital, que conquistam boa parte do mercado internacional. O clássico processo de substituição de importações dos países retardatários evoluiu de forma muito rápida e intensa na China nos últimos 50 anos.
A China cresceu extraordinariamente não somente na esfera econômica, mas também na produção científica e tecnológica. O conhecimento, inclusive básico, também avançou espantosamente, alcançando a liderança no registro de patentes em escala internacional. No seu 14º Plano Quinquenal (2021-2025) a China se propõe a alcançar a liderança internacional em numerosos itens, como semicondutores e outros produtos, que têm aplicação inclusive no setor bélico. Os itens economia, meio ambiente e forças militares têm grande ênfase nesse plano. A “descoberta” da ameaça que a China representa para a incontestável liderança econômica e militar dos EUA já se manifestava muito antes das eleições de Trump. Nesse quadro de intensa transição política internacional, prosperaram as pressões para o recuo do processo de internacionalização das economias norte-americana e de outros países.
A invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022, mostrou que os novos artefatos tecnológicos, tais como os drones e a utilização de sistemas de comunicação sofisticadíssimos, ou seja, a competição tecnológico-militar é decisiva nesse conflito. A competição entre países, estruturas produtivas e empresas ganha novos e agudos contornos nas guerras. O poder político induz, frequentemente, o comportamento das empresas, principalmente aquelas que atuam em setores com maiores desdobramentos militares.
Embora boa parte da literatura econômica trate a competição entre agentes econômicos em atividades ligadas ao consumo e produção, quando o cenário institucional se torna instável, outros elementos passam a desempenhar papel crucial. Em momentos de reestruturação internacional, as políticas das nações podem se tornar os elementos mais decisivos, inclusive no processo de competição capitalista.
A competição militar entre nações significa, afinal, buscar os melhores armamentos, o que é, muitas vezes, uma questão de sobrevivência. Ou seja, trata-se de questão absolutamente decisiva e pode representar a mais alta prioridade na alocação de recursos dos países, inclusive recursos públicos. Do ponto de vista histórico, a competição militar não é uma novidade e tem sido importante fonte de inovação, mas em momentos de conflitos abertos, torna-se ainda mais explícita, como ocorre atualmente. O momento atual apresenta-se rico em inovações radicais e a pressão para seu avanço e utilização é enorme.
A pandemia nos ensinou que os países não podem depender exclusivamente de produtos importados e sacrificar a capacidade de produção interna pode ser um risco elevado. O caso das vacinas e respiradores na pandemia da covid no Brasil é um exemplo. A adoção de políticas de integração internacional deve ser modulada também por esforços locais para manter e aprimorar a capacitação científica e tecnológica em setores estratégicos, como a área metal-mecânica, a tecnologia militar e o setor de saúde. Ou seja, há que repensar o grau de integração internacional do aparato produtivo e apoiar a capacidade científica e tecnológica local.
(*) Hélio Nogueira da Cruz é professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP.