Um olhar sobre o cuidado do câncer bucal
O diagnóstico do câncer bucal traz alterações importantes na vida das pessoas em suas diversas dimensões. As práticas de saúde devem ter seus alicerces nas melhores evidências científicas, nas mais avançadas técnicas e, essencialmente, desenvolverem-se com vínculo e acolhimento. As competências profissionais do cirurgião-dentista são, portanto, fundamentais para a condução dos processos de revelação diagnóstica e de construção de itinerário terapêutico das pessoas com câncer bucal.
A fim de conhecer, analisar e compreender as competências do cirurgião-dentista a partir do olhar das pessoas com câncer bucal, foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa em que se entrevistaram usuários que estavam em acompanhamento clínico para o tratamento do câncer bucal no setor de Estomatologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) no período de setembro a novembro de 2021. As entrevistas abordaram os seguintes temas: acolhimento e produção de vínculo na rede de saúde; comunicação do diagnóstico; e construção do itinerário terapêutico.
Nas entrevistas, os usuários destacaram que o profissional de saúde precisa ver o paciente como uma pessoa repleta de sentimentos, expectativas e vivências e que traz consigo uma bagagem singular de experiências de vida. Ao se relacionar com o paciente, o profissional de saúde deve desenvolver habilidades e competências que criem espaços ao paciente para uma existência mais digna no contexto oncológico: com um olhar, um abraço, um carinho, uma escuta.
Quando o profissional vê e reconhece o paciente como um ser inteiro, um corpo vivo e não adoecido, se constrói um cuidado humanizado apoiado no acolhimento e no vínculo. O processo de diagnóstico do câncer bucal é um momento muito delicado para o paciente e sua família, pois, além de alterar a percepção de si mesmo, gera sentimentos de medo da mutilação, da dor, das limitações, do futuro e da morte.
Humanizar em saúde engloba não somente o acolhimento e os direitos do doente, mas a compreensão do impacto que o adoecer produz em cada pessoa. O adoecer de câncer de boca é uma condição patológica que altera as funções de um corpo que precisa encontrar novas regras para si – regras essas que passam a normalizar a vida e as relações desse corpo-vivo, que agora lida com dores, sofrimento e até mutilações. O paciente se torna mais vulnerável tanto física quanto emocionalmente, portanto é essencial que o profissional desenvolva um vínculo com afeto, acolha, escute e conheça as angústias que cada pessoa compartilha ao longo do itinerário.
As competências do cirurgião-dentista, pelo olhar das pessoas entrevistadas, precisam estar presentes e alinhadas desde o acolhimento do paciente, com o surgimento das primeiras queixas, mas também nas percepções de mudanças no estado de saúde desse paciente e no aparecimento de novos sinais e sintomas. Dessa forma, o profissional de saúde pode ter uma comunicação clara e acolhedora, construindo junto com o usuário e sua família as possibilidades de cuidado. Entendemos que, dessa forma, será possível identificar os itinerários mais adequados para cada caso, podendo fortalecer o percurso do paciente pelos diferentes níveis de atenção na rede de saúde.
Podemos destacar o quão essencial é a comunicação adequada, acolhedora, afetiva e com uma escuta atenta e voltada às necessidades e possibilidades de cada paciente com câncer bucal em todas as fases de acompanhamento e tratamento. Essa é uma competência profissional que precisa ser aprendida e desenvolvida no mesmo nível das habilidades técnicas e/ou cirúrgicas, pois a capacidade de comunicação pode trazer aspectos positivos para o paciente, aliviando os sintomas, acalmando e trazendo conforto. Esses são os pilares do atendimento humanizado, quando a equipe de saúde enxerga o paciente como central para o cuidado, como um ser vivo único, minimizando a despersonificação dele com a doença e com o ambiente hospitalar.
As competências profissionais de cirurgiões-dentistas para o acompanhamento e a coordenação do cuidado em saúde dos usuários com diagnóstico de câncer bucal são, portanto, necessariamente aquelas que potencializam a relação profissional-usuário, que fortalecem a autonomia e o percurso singular de cada pessoa na construção de seu cuidado.
Para que o cirurgião-dentista desenvolva um cuidado humanizado em saúde, além do conhecimento técnico, teórico e científico, não deve se limitar aos aspectos clínicos e restringir sua prática à boca: deve preparar-se para outras competências profissionais que possibilitem contemplar o controle da dor, os percursos do cuidado e a qualidade de vida. E, para isso, esse profissional precisa desenvolver suas competências de escuta, empatia, criatividade, vínculo, comprometimento, atenção e respeito à vida.
(*)Fabiane Xavier Kwiecinski é graduanda em Odontologia pela UFRGS. Fabiana Schneider Pires é professora adjunta do Departamento de Odontologia Preventiva e Social da Faculdade de Odontologia da UFRGS.