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Votar era coisa de homem branco e rico, e não faz tempo

João Prestes (*) | 20/09/2022 15:46

Os brasileiros se encaminham às urnas nesse 2 de outubro num exercício que já parece estar acomodado na rotina da sociedade atual, mas é importante a gente lembrar que até pouco tempo atrás não era assim e nosso sistema democrático foi construído de forma lenta e gradual.

As mulheres, por exemplo, tornaram-se eleitoras há menos de um século e os analfabetos só puderam escolher seus representantes depois da ditadura militar. Aliás, votar no Brasil era um privilégio de homens brancos e ricos durante todo o período monárquico. Hoje, para se alistar na Justiça Eleitoral basta ser brasileiro nato ou naturalizado e ter mais de 16 anos de idade.

Conforme o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), somos 156 milhões de eleitores e eleitoras aptos a votar. A história do voto no Brasil é contada em livro pelo professor Jairo Nicolau, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, obra que serviu de fonte principal para esse artigo.

Durante o Império o voto era censitário, restrito a homens com pelo menos 25 anos, ou, se fossem casados ou oficiais militares, a partir dos 21 anos, mas caso fossem bacharéis ou padres, aí não havia barreira de idade.

A renda exigida do candidato a eleitor – isso em 1824, na implantação do Império - era de 100 mil réis para ser “votante” e 200 mil réis para ser “eleitor” (complicou? já explico). Em 1846 esses valores dobraram: 200 mil réis para ser votante e 400 mil réis para ser eleitor.

Com tantas exigências, votar era coisa de poucos: só 5% dos adultos estavam aptos a exercer esse direito em 1835. No fim do Império (1884) o percentual havia subido para 29%.

Não havia a exigência de saber ler ou escrever. Os libertos só podiam votar na ”eleição de primeiro grau” (calma, detalho isso também). E o que era ”eleição de primeiro grau”, “votante” e “eleitor”? Pois bem, vamos saber já.

O processo eleitoral era indireto. Os “votantes” (todos os cidadãos com direito a votar) participaram da “eleição em primeiro grau” para escolher os “eleitores” de uma determinada paróquia. Isso mesmo: a divisão territorial era paroquial e os trabalhos eleitorais começavam depois da Missa, ali mesmo, na igreja matriz. A votação era em lista.

Por exemplo: vamos supor que a paróquia de Campo Grande tinha direito a um colégio eleitoral de 12 eleitores. Dessa forma, cada votante teria que depositar na urna um papel com 12 nomes escritos nela.

Finda a votação, apuravam-se os votos e os 12 mais votados eram declarados os eleitores de Campo Grande. Eles participariam da eleição em segundo grau para escolher os deputados e senadores.

Detalhes importantes: o voto não era sigiloso, não havia título nem cédula oficial, a pessoa podia trazer uma lista de casa ou escrever os nomes ali mesmo, na frente dos mesários, isso quando não eram os próprios que faziam o preenchimento já que poucos votantes eram alfabetizados.

Durante o Império o percentual de analfabetos no Brasil girava entre 70% a 80% da população. O alistamento eleitoral era feito no ato da eleição: o cidadão se apresentava ao presidente da mesa, comprovava idade, posses ou renda, e ficava sabendo se havia ou não sido aceito como “votante”.

Se a resposta fosse negativa, não tinha a quem recorrer. Além de não representar a vontade da maioria da população, o processo eleitoral no Império era suscetível a todo tipo de fraude. Havia o “eleitor peregrino” que votava em várias paróquias numa mesma eleição, o “eleitor fantasma” que tomava o lugar dos falecidos; o “fósforo”, que era uma versão atualizada do fantasma, mas no caso tomava o lugar também de eleitores vivos, ausentes por estarem enfermos ou por quaisquer motivos.

E por fim, concluída a votação, as fraudes continuavam na totalização dos votos com o esquema chamado “bico de pena”. As atas de votação continham tantas rasuras quantas necessárias para acomodar todos os interesses das lideranças regionais e nacionais. O sistema funcionava de maneira eficiente para manter o Império sob rédeas curtas.

Produzia “câmaras unânimes” com todos os membros de um mesmo partido. Senão vejamos: na legislatura de 1849-52, 99% dos deputados eram conservadores, enquanto na seguinte (1853-56) todos os deputados eram conservadores.

Claro que havia críticas e paulatinamente foram sendo aceitas mudanças para aprimorar o processo eleitoral. Em 1842 o alistamento eleitoral passou a ser feito antes do pleito, em 1846 a votação passou a ser no mesmo dia (primeiro domingo de novembro) em todo Império, embora pudesse ser estendida por até três dias para aguardar os faltosos; em 1875 institui-se o sigilo do voto e em 1881 é abolida a Missa que antecedia os trabalhos eleitorais e a eleição em dois graus.

Findo o Império, chega a República e isso não significa que o sistema eleitoral brasileiro tenha melhorado. Pelo contrário. O principal golpe na democracia foi proibir o voto dos analfabetos, o que se dá ainda no crepúsculo do Império com a Lei Saraiva de 1881.

O resultado imediato foi a diminuição no número de votantes: era 13% da população livre em 1872 e caiu para 2,2% em 1894, na primeira eleição republicana. Isso ocorre mesmo tendo sido dispensado o critério de renda para ser considerado eleitor.

As eleições passaram a ser gerais – votava-se para todos os cargos, inclusive presidente da República, mas num sistema tão rígido e controlado que garantiu a vitória do candidato indicado pelo governo até o fim da chamada Velha República.

E eram vitórias acachapantes: Prudente de Moraes se elegeu em 1894 com 80,12% dos votos. Foi seguido de Campos Sales (90,93%), depois Rodrigues Alves (91,69%) e Afonso Pena (97,92%).

Em 1910 houve fissuras na aliança governista e o paulista Rui Barbosa se lança contra o gaúcho Hermes da Fonseca, apoiado pelo governo. Barbosa teve 35,51% dos votos, derrotado pelo candidato da situação que teve 64,35%. Vê-se que, embora danificada, a engenhoca eleitoral governista deu conta de vencer o pleito.  Na eleição seguinte (1914) a aliança governista se recompôs e lançou Venceslau Brás candidato único, vencendo com 91,59% dos votos.

O esquema funcionou de novo na eleição seguinte (1918, com Rodrigues Alves/Epitácio Pessoa) e só volta a apresentar problemas na eleição presidencial de 1922 com o embate entre Arthur Bernardes (MG-SP) e Nilo Peçanha, que representou os estados do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Venceu Bernardes (59,46% x 40,46%), mas a campanha oposicionista pode ter desestruturado a Velha República, que é derrubada pelo golpe comandado por Getúlio Vargas oito anos depois.

Somente após a ascensão de Vargas ao poder o sistema eleitoral sofrerá novas e importantes mudanças. A principal delas é o direito das mulheres ao voto, garantido no Código Eleitoral de 1932 e na Constituição de 1934. Entretanto, só tinham direito ao voto as mulheres solteiras e viúvas desde que comprovassem exercer um trabalho remunerado. As mulheres casadas tinham que conseguir a autorização do marido.

Essas regras quanto ao voto feminino vigoraram até 1946, quando então o direito passou a ser irrestrito. Os analfabetos viriam a reconquistar o direito ao voto apenas em 1985, com a reforma constitucional operada logo após o fim da ditadura militar.

(*) João Prestes é jornalista e historiador graduado pela UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul).

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