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Beba das Crônicas

Em algum lugar no meu coração mora uma cidade...

Por André Alvez | 25/08/2024 10:35

Em algum lugar do meu coração existe uma casa de taboa, um quintal imenso no qual um inseto cavoucava o chão e despertava a curiosidade minha e a de um cachorro vira-latas. Lá na ponta, quase em frente ao portão, se erguia um majestoso pé de araticum.

Naqueles tempos tudo era perto e ao mesmo tempo distante.

Nesse lugar que meu coração bate mais forte, as folhas do pé de araticum muitas vezes secavam e a rua não tinha asfalto.

Eu, que sempre sonho acordado, as vezes me pego viajando no antes. Então surge o brilho seco – feito estampido – seguido do soar de um sino distante e a visão de um senhorzinho vendendo biju. Perto dele, as flores em ramas despencam dos barrancos. O fim do dia, o cair da noite, o zumbido das cigarras, cantando alucinadas, presas às árvores no meu quintal sem fim.

Em algum lugar do meu coração existem alguns soluços, de quando os temporais faziam tudo em volta escurecer e eu tratava de olhar apressado em torno de figura impoluta da professora, mulher forte, imbatível diante de tantos olhares pálidos. Provavelmente ela também sentia medo, mas não deixava transparecer. Num rompante, trancava todo mundo na sala de aula e nos mandava escrever. Eu tinha medo, muito medo, mas sufocava o grito no receio de que meu medo fosse maior do que os dos outros, talvez fosse o único. Eu era um menino que tinha medo de tudo. Novamente olhava para a professora e sentia coragem, embora pelo vidro da janela as nuvens escuras se mostrassem cada vez mais ameaçadoras.

Raios, trovões, ventania.

As chuvas de hoje não são tão medonhas como antes.

Ainda há pouco soprou o cheiro gelado daqueles temporais. O relâmpago fez com que a rua perdesse o asfalto, se transformasse em terra vermelha, se abrindo de vez, e bem lá no fundo, de dentro dela, surge a imagem dos meus entes que já se foram.

Saudades, saudades...

Em algum lugar do meu coração campo-grandense, pontuado de lágrimas de alegria, ressoa o grito da guerra que combati com denodo, embora o medo de sempre. Era um tempo difícil, banho tomado na caneca, parede de casa feito de taboa, assoalho de cimento vermelhão.

Em algum lugar do meu coração ainda paira o vento soprando, o quintal tomado por redemoinho, o portão aberto apontando lá fora...”no meio do caminho tinha uma pedra”, quanto mais eu me aproximava, mais ela se transformava numa montanha. O pé de araticum envergava, mas não cedia. Araticum é fruta que tem espinhos. Era um aviso para o que viria. Até hoje tento desviar desses espinhos.

Em algum lugar do meu coração ainda voam aquelas aves cortando o céu no final do dia, rumando para os galhos das árvores de verde espesso que não existem mais, nem as aves, nem as árvores.

Araticum é fruta doce, isso o meu coração sabe e nunca esquece.

Em algum lugar do meu coração ainda sou pequeno, ignaro das rugas no meu rosto, sou guri de estilingue preso ao pescoço e o dedo cortado pelo cerol esparramado na linha de soltar pandorgas.

O pé de araticum não existe mais, mas seu gosto doce ainda carrego na boca.

Aos poucos me transformo, sou o rapaz do cabelo rebelde, estranhando os estalos no corpo, uma surpresa de cada vez, duas espinhas, outras tantas, o caroço no bico do peito, ardendo tanto quanto a visão das diferenças, os infinitos e indecifráveis mistérios escondidos no corpo de mulher.

No fundo do meu coração existe uma cidade, ela cresceu bem mais do que eu e cuja rua, que agora me apanha, carrega dentro dela as águas geladas de um Córrego submerso. De vez em quando me deixo levar até aquelas calçadas, hoje abandonadas, riscadas pelo passar do tempo. Quase consigo escutar a correnteza rasgando o chão abaixo dos meus pés, incólumes, apressadas, até encontrar o outro Córrego correndo atravessado no final da rua eterna.

Em algum lugar do meu coração há um dedilhar de violão, ligeiramente desafinado, entrando aos poucos em desacordo com a rouquidão da voz saída de um disco na vitrola, rodando descompassado, falhando às vezes, espalhando pelo ar um som com gosto de araticum.

E da cozinha partia o cheiro de alho queimando, depois transformado no prato que hoje não posso comer.

Há o que perturba, há o que deslumbra.

Em algum lugar do meu coração se abre um azul distante, o dia começando e no céu o sol brilhando, mas o temporal chega depois do almoço, trazendo goteiras no teto de telha de barro. Quando a chuva cessava, a janela aberta, enxurrada indo embora nos vãos da terra, levando embora os barquinhos de papel.

Hoje as chuvas demoram a cessar, mas meu medo é menor.

O pé de araticum, em frente de casa, tinha espinhos que ainda me ferem.

No centro da cidade, no local que hoje é tomado por viciados, existia um parque de diversões. Na chegada já se ouvia o espocar das espingardas de pressão, carregadas de balas de rolha, acrescidos aos gritos de gente tentando derrubar carteiras de cigarros, quase em frente aos carrinhos elétricos batendo um nos outros. Eu adorava dirigir aqueles carrinhos. E tinha o carrossel, o chapéu mexicano...Eu tinha medo de altura, mas da roda gigante dava para ver toda a cidade. Ah...a minha cidade...

Quando foi que arrancaram o meu pé de araticum?

O circo, a lona fedendo toalha molhada, passou por aqui, deixou marcas indeléveis.

Operário, Comercial, vermelho, branco e preto, bandeiras tremulando pela cidade. Tenho tantas saudades...

As vielas e os trilheiros de antes prosseguem perfeitamente traçados na minha mente, transformados, num repente de tempo passando ligeiro, nas ruas e avenidas da cidade grande até no nome.

Longe de ti, não existe caminho, sempre volto, meu chão, meu lugar.

Não me recordo em qual primavera o araticum floriu pela última vez. Não sei quando foi a última vez que brinquei com os meus amigos até a noite chegar. De certo o beija flor partiu apressado quando a flor desabrochou e restaram essas lembranças.

Não se pode voltar no tempo, mas se pode chorar, então eu choro.

Em algum lugar do meu coração a chuva não cessa e um rito de saudade me completa.

É nesse lugar que planto a minha alma – Campo Grande, minha terra querida – nele carrego para sempre o seu cheiro, a sua cor vermelha e nos meus lábios o doce gosto da fruta do araticum.

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