Hão de chorar por ela os cinamomos
Nesse final da tarde, peguei um livro na estante e fiquei um bom tempo com os olhos pregados no poema “hão de chorar por ela os cinamomos” de Alphonsus de Guimaraens, poeta simbolista, completamente mergulhado na amargura, devastado pela morte prematura de sua noiva Constança.
“As estrelas dirão – Ai! Nada somos pois ela se morreu silente e fria...E pondo os olhos nela como pomos, hão de chorar a irmã que lhes sorria”.
Ah, o que seria da poesia se não fosse a tristeza?
Por conta dessas coisas evito poesia, prefiro a alegria e ela sempre campeia numa crônica, embora muitas vezes (oh, hoje está assim) a tristeza me apanhe sem chances para escapes.
As culpas são muitas, talvez a mais dolorosa seja essa dos jornais dando conta do picadeiro do ódio no qual se transformou o Congresso Nacional.
Está na hora de ouvirmos novamente o discurso de Charlie Chaplin no final de “O grande ditador”.
Cada vez está mais evidente, pensamos em demasia e sentimos bem pouco, quase nada, sequer notamos, a vida de todos, tênue e ligeira, é uma gota de água numa colher, os movimentos bruscos a fazem correr trêmula de um lado para o outro, é preciso a segurança de um porto longe dos terremotos, de onde se possa sentar por instantes, olhar para cima e apreciar a beleza do céu, ainda que nesse céu muitas vezes passeiem nuvens tristes.
Ainda há pouco, um tucano solitário rasgou o céu do meu quintal, se meteu entre as folhas úmidas de uma árvore e por lá ficou escondido.
Bicho solitário é bicho triste.
É o mesmo cenário dos tempos de antes e eu ainda fumava.
Lembro da fumaça subindo ao céu, como se pretendesse voar junto do tucano.
Foi um dia triste, eu estava tentando concluir o final do personagem de um conto, um moço bom, iria matá-lo e já sentia saudades. Escrever tem dessas coisas, no fundo todo escritor é um ser triste e solitário. Afinal, quem haverá de entender o sujeito trancado dentro de um mundo que caminha unicamente pela sua cabeça e por lá vai criando situações e personagens?
Volto a Guimaraens e o enxergo como se fosse um Carlitos triste, sem chapéu coco, mas do rosto amargo, vestindo um terno com o brilho das asas do tucano.
Tudo parece um estranho ritual, o pássaro solitário, o poema triste, o dia tão frio, as imagens na internet mostrando gente estúpida no Congresso Nacional.
Um gole de vinho, está azedo, mas permaneço tentando sorrir.
Na folha de um livro aberto vejo Frida Kahlo me encarando com a sobrancelha hirta, severa, o olhar penetrante da mulher que nunca sorriu.
Provavelmente uma das pessoas mais tristes de sempre: “Bebia para afogar as mágoas, mas as malditas aprenderam a nadar”.
Tento fugir da cena noutro gole de vinho, ah pobre de mim, não entendo nada de vinhos, sempre tenho a impressão que está azedo e vai fazer meu estômago arder.
Onde estão os meus amigos do vinho?
Chaplin, o genial Chaplin, tenta me consolar: “smile and maybe tomorrow you´ll see the sun come shining through for you”...
A grande vantagem de escrever bebendo vinho é essa de conseguir entender poesia escrita em inglês.
Então tento sorrir, mas logo me calo, porque esbarrei na taça e derrubei vinho no rosto de Frida Kahlo...
É um instante poema, de rima boba de um tanto, efeito do vinho, um frio repente, amargura é tudo o que sinto, eles brigam, eu vinho tinto...
O rosto de Frida manchado se mostra ainda mais triste, agora em tons marrons, essa cor sem graça representando a tristeza.
Teodoro...Tive esse amigo na adolescência, sujeito calado, quase nada dizia, o rosto fechado quase sempre.
Para espantar a tristeza, Teodoro assoviava.
Tudo seria normal se ele não vivesse assoviando.
Por conta dessa desventura, durante um bom tempo eu sentia tristeza todas as vezes que ouvia “Vida cigana”. É que esse amigo, hoje distante e quase sem rosto na minha memória, adorava a música eterna do Geraldo Espíndola.
Mais tarde, quando a tristeza passar, vou ouvir músicas do Geraldo. É necessário.
Sorrio levemente ao lembrar que tucano não sabe assoviar e Frida Kahlo fez amor com Trótski para se vingar de Diego Rivera.
Ah esse vento gelado, não quer ir embora, traz novamente na minha cabeça a poesia de Alphonsus de Guimaraens e então vejo as flores murchando nesse tombar do dia, marchando pesadas entre cores roxas e virgens mortas, espalhando no ar o doce aroma de canela, enquanto eu tento sorrir o que chorar nunca soube.
Lá fora a lua já procura uns restos de nuvens e eu preciso esconder a tristeza de perto de mim.
A esperança, o amanhã surgirá no horizonte de braços dados com Charles Chaplin e seu brado retumbante: “Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontres, levanta os olhos! Vês, Hannah?! O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz!”
Aliso o rosto manchado de Frida Kahlo enquanto o tucano dorme entre as folhagens, descansando as asas para receber os primeiros brilhos do sol – o sol Hannah! – os trogloditas e os canalhas não suportam a luz do sol e ela amanhã haverá de nascer no mesmo horizonte de sempre.
André Alvez