Ações de grandes empresas transformam Judiciário de MS em "balcão de cobranças"
Apenas três grupos econômicos de grande porte são responsáveis por 12.640 ações na justiça estadual
Pequenas empresas, grandes cobranças. Se há profissionais do Direito que abusam da possibilidade de ingressarem com ações e "predam" o sistema judiciário, por outro lado, há as empresas que se utilizam dos Juizados Especiais, dedicados às causas pequenas, para acessarem a Justiça com milhares de ações cobrando cifras milionárias.
RESUMO
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Três grandes grupos econômicos são responsáveis por 12.640 processos de pequenas causas, cobrando R$ 27,1 milhões na Justiça de MS, sobrecarregando os Juizados Especiais. Odonto Excellence e Lojas Serrana foram identificadas como empresas que utilizam o sistema como "balcão de cobranças", com milhares de ações cada, muitas vezes de valores ínfimos. Uma terceira empresa, ligada a uma universidade, também foi identificada com práticas semelhantes. O TJMS alerta para o uso abusivo do sistema, que prejudica a eficiência da Justiça e o direito dos cidadãos a um processo justo.
Pelos dados do Cijems (Centro de Inteligência do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul), três grupos econômicos de grande porte, que possuem franquias ou filiais menores aqui, são responsáveis por 12.640 processos de “pequenas causas” e que juntos cobram R$ 27,1 milhões na Justiça de Mato Grosso do Sul. Somente dois desses grupos somam cobranças que totalizam R$ 26,9 milhões.
Para o Poder Judiciário de Mato Grosso do Sul, o maior problema dessa situação é a redução na eficiência dos Juizados Especiais, que acabam sobrecarregados com demandas de poucas empresas, que mesmo sendo micro ou de pequeno porte, no todo, englobam grandes redes, inclusive nacionais.
“Em apertada síntese, são demandas aforadas por empresas que se apresentam como ME ou EPP nos termos da Lei Complementar n° 123/06, porém aparentemente são integrantes de grupo econômico de grande porte, que a despeito disso utilizam de seu enquadramento como pequenos empresários para ajuizar cobranças e execuções de créditos decorrentes da prestação de sua atividade principal perante os juizados especiais cíveis, em volume tal a permitir o levantamento da suspeita de que tais empresas passaram a utilizar o Judiciário como "balcão e cobranças", com sérios reflexos deletérios à eficiente administração da justiça.”
Com isso, nas mais de 12 mil ações citadas, as demandas somam mais de metade do acervo judicial em trâmite, “do que se infere um aparente redirecionamento e sobrecarga da força de trabalho da unidade em benefício de uma ou poucas empresas tão somente”, diz a publicação do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul.
A reportagem conseguiu identificar dois dos três grandes grupos analisados pelo Centro de Inteligência do TJMS. Foi encaminhado pedido de explicações para eles. O primeiro é a Odonto Excellence, que conforme o relatório, tem nove mil processos de cobrança em 16 comarcas do Estado. Todas elas foram impetradas por 11 franqueados da empresa, o que corresponde a uma média de 818 processos para cada um.
Para se ter uma ideia, somente em Sidrolândia, as demandas das clínicas odontológicas da rede são de 88,6% no Juizado Especial e apenas 11,4% correspondem aos demais procedimentos de pequenas causas da comarca. No total geral, em 10 comarcas analisadas pelo Cijems, ações de cobrança dos franqueados condizem com 77,1% dos processos e somam R$ 17,9 milhões em cobranças por não pagamento.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina identificou o mesmo método do grupo no sistema judiciário de lá. “Na ocasião, foi reconhecido que, por se tratar de uma rede de serviços odontológicos com inúmeras franquias pelo Brasil, apesar de individualmente configurados como pequenas empresas, os franqueados acabaram reconhecidos como parte de um grande grupo econômico, cuja receita bruta ultrapassa o teto para enquadramento como empresa de pequeno porte, de modo que não podem se valer do juizado especial para manejo de suas pretensões relacionadas ao negócio”, enfatiza o documento.
O segundo caso identificado como abusivo é das Lojas Serrana, que apenas na comarca de Ribas do Rio Pardo, cidade com 25 mil habitantes, abriu 48,4% das ações de pequenas causas impetradas no ano de 2023. Ainda lá, a Serrana, junto com as franquias da Odonto Excellence, foram responsáveis por 278 dos 306 procedimentos judiciais do Juizado Especial abertos no mesmo ano.
O grupo abriu, com base em notas promissórias, 1.189 ações em sete comarcas que totalizam pedidos de pagamento de R$ 9 milhões. Segundo os dados do TJMS, “várias destas ações foram extintas recentemente, principalmente nas comarcas de Ribas do Rio Pardo e Rio Negro, com fundamento no Enunciado n.º 172 do Fonaje, ante o entendimento judicial que, embora com personalidades jurídicas distintas, estão as duas empresas e suas filiais sob controle e administração comum das mesmas pessoas.”
Para o Cijems, o arranjo empresarial “não pode ser empregado da maneira como vem sendo feito, pois (...) provoca sério problema de eficiência da administração judicial do acervo em trâmite, com o acréscimo do efeito reflexo de morosidade processual e prejuízo à garantia processual da razoável duração do processo por sobrecarga de ato processuais direcionados a poucos interessados que fazem da unidade jurisdicional, na prática, um 'balcão de cobranças', em notório desvirtuamento da missão fundamental atribuída constitucionalmente ao Poder Judiciário por intermédio da Lei nº 9.099/95”.
Tal lei é a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, que em dezembro de 2009 foi modificada pela Lei 12.126 e passou a admitir pessoas jurídicas nas pequenas causas, “desde que classificadas como microempresas ou empresas de pequeno porte”. Mas valendo-se disso e mesmo sendo formalmente enquadradas como microempresas ou de pequeno porte, elas fazem parte de grandes grupos econômicos.
“Estas empresas, aproveitando-se dispensa legal do dever de recolhimento de custas processuais e da inexistência de sucumbência em primeiro grau passaram a despejar um enorme volume de ações no Poder Judiciário, utilizá-lo como um "balcão de cobranças", muitas vezes de valores ínfimos ou incompatíveis com os custos da atividade jurisdicional”, enfatiza o levantamento da Central de Inteligência.
Uma terceira empresa, cuja identidade não foi identificada pela reportagem, tem apenas 180 processos abertos em duas comarcas, mas foi inserida no rol de empresas “predadoras” porque “revela características de integrar grupo econômico com universidade privada de grande porte, com vasta rede de cursos e faturamento anual que excede os limites estabelecidos para empresas de pequeno porte acessarem o sistema do juizado especial cível.”
As ações impetradas em Juizados Especiais somam cobranças de R$ 240,6 mil. A empresa fornece serviços educacionais e “mantém publicidade conjunta com a aludida universidade, inclusive com link vinculado no mesmo sítio eletrônico desta, no qual oferece ao público a modalidade de ensino EJA (Educação e Jovens e Adulto) via online. Ademais, apesar de formalmente apresentar-se como pequena empresa, conta mais de 20 unidades anunciadas no Mato Grosso do Sul em funcionamento”, afirma.
Conclusão - O relatório da Cijems funciona como alerta e norteador das ações dos magistrados caso se deparem com ações que possam ter cunho abusivo. Com isso, a identificada nota técnica 09/2024, de julho do ano passado, evidencia a necessidade de “coibir o uso indiscriminado e abusivo do sistema dos juizados especiais por parte de empresas integrantes de grandes grupos econômicos”, porque atenta contra “o dever fundamental da prestação jurisdicional em tempo razoável a todo cidadão, resultando em ineficiência administrativa da administração da justiça, o que representa prejuízo àqueles que realmente necessitam da tutela jurisdicional pela via dos juizados especiais”, define a nota.
Não houve resposta da Odonto Excellence e nem das Lojas Serrana até a publicação deste material.
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