Presas, travestis dividem cela de 30 e sofrem preconceito até para trabalhar
Melhora é gradual e fruto de uma batalha travada contra a discriminação de outros presos. Facções têm códigos rígidos e não aceitam conviver com LGBTIs
Um dia ensolarado faz caminho no pátio e ilumina os rostos de vários homens com camisetas cor de laranja. O “cenário encarcerado” que ocupa a imaginação sobre os presídios, ali não encontra confirmação, já que a maioria, naquela manhã, não estava nas celas. Alta, maquiada e com os cabelos loiros presos em um rabo de cavalo, Loira, como é conhecida, rasga o espaço com desenvoltura e parece não se importar com nada mais do que chegar aonde precisa.
No IPCG (Instituto Penal de Campo Grande), Loira, 33, como gosta de ser chamada (apelido de Rogéria), é uma das mulheres transgênero a ocuparem uma cela específica para LGBTIs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais) no presídio, hoje com cerca de 30 pessoas. É, também, uma exceção que trilhou o próprio caminho de resistência para encontrar dignidade e respeito no presídio.
Não é o caso da maioria. A mesma discriminação que faz com que 90% das travestis e transexuais busquem a prostituição nas ruas – estimativa da (Antra) Associação Nacional de Travestis e Transexuais – é encontrada nos presídios, já que a maioria não trabalha por falta de aceitação dos outros presos.
Além do desemprego, o domínio das facções nos presídios, fator que tem crescido nos últimos anos, também promove aumento da divisão social carcerária. Um código rígido estabelecido pelos presos pertencentes a associações criminosas como o PCC (Primeiro Comando da Capital), não aceita que eles convivam no mesmo espaço que pessoas LGBTIs.
O IPCG, ainda assim, é considerado um local mais seguro. Livre de facções até onde se sabe – chama-se esse tipo de presídio de “presídio de oposição” – a vida das travestis é, ali, um pouco mais tranquila. Exceção na maioria dos presídios brasileiros, elas podem dormir em celas específicas. Serem aceitas no trabalho, ainda assim, é difícil. Apenas 5 conseguiram.
É o que explica a chefe da Divisão de Promoção Social, Marinês Savoia. “A inserção no trabalho ainda não tem. É por conta da população, dos nossos internos que não aceitam. Os próprios internos não aceitam, com todo esse trabalho de palestras, temos umas quatro ou cinco já inseridas. A gente tenta, nós temos vários grupos com as técnicas que fazem esse tipo de trabalho, de aceitação, de falarem o que é, como é, e assim, devagarzinho”, relata.
Loira é uma das mulheres trans que conseguiram trabalho e melhores condições para a “cela 4”. “O começo”, como ela denomina o momento em que chegou ao presídio não foi fácil. Os presos não aceitavam dividir objetos pessoais, como pratos e copos e os agentes penitenciários, conta, “olhavam com preconceito”.
“No começo era difícil, tinha muito preso que olhava pra mim quando eu comecei a trabalhar, olhava meio de cara feia, agora já acostumou, porque viram que eu não sou um bicho, não sou um animal, sou um ser humano. Sim [são resistentes a pessoas LGBT trabalharem], são bastante. Acho que é por preconceito mesmo, o preconceito é grande”, diz.
Para ela, ainda assim, tudo é um trabalho “de força de vontade” e de não desistir. Loira conta ter unido a cela 4 e batalhado pela restruturação do espaço. “Tem bastante coisa que tem que mudar. Tem muitos agentes ainda... hoje não, mas no começo tinha muitos que olhavam pra mim com preconceito, eu percebia”, explica.
As facções – Loira conhece de perto o preconceito, mas afirma que os presos que integram facções são diferentes “dentro e fora do presídio”. É como se tentassem, relata, estabelecer figuras de poder e domínio dentro das penitenciárias.
Pesquisador e consultor sobre a vida de pessoas LGBTIs nos presídios, Gustavo Passos escolheu o tema como tese de Doutorado e foi contratado, em 2018, para realizar uma pesquisa sobre as condições dos presídios para as pessoas LGBTIs de todo o país. A pesquisa, vinculada ao MDH (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos), vai gerar um relatório para orientar o futuro das políticas públicas. Gustavo chama os presídios de “instituições complexas”.
“A prisão é uma instituição muito complexa, se tem facção ou não, isso tem um efeito muito direto, algumas facções tem estatutos que proíbem o que eles chamam de pederastia, por exemplo o PCC, não são hostis aos LGBTIs, mas exigem que não fiquem juntos, tem algumas diferenças, tudo tem que ser levado em consideração”, afirma.
O consultor explica que a temática tem surgido, de maneira mais incidente, a partir de 2011, com uma série de denúncias sobre violações de direitos humanos. “A violência que as travestis e transexuais sofrem pelos outros apenados é muito comum nas prisões que não têm celas específicas. São forçadas a carregar células e drogas dentro do anus. Não consideram a identidade de gênero, fazer um chamamento para o nome de registro masculino, tem uma série de pesquisas que mostravam que estava faltando esse olhar, o governo não tinha dados oficiais produzidos dentro de uma análise, e foi por isso que surgiu esse trabalho”, explica.
O trabalho tem duas frentes. A primeira é um questionário enviado pelo MDH aos governos estaduais e repassado dos governos aos presídios. Em seguida, Gustavo visita os presídios, analisa as condições físicas e sociais e entrevista os presos. O consultor já concluiu o trabalho nas regiões sul e centro-oeste e agora iniciou a região nordeste. Para ele, o principal entrave para a melhora nas condições é o “peso da lei”, mas defende que o Brasil, na América Latina, foi o país que mais avançou na questão.
“Hoje no Brasil a gente tem uma resolução que não tem peso de lei, que orienta os presídios a terem um tratamento penal adequado, as prisões não são obrigadas a cumprir, então parte [do trabalho], além de analisar a experiência a gente também tenta ver como as prisões tem se adequado às orientações. O Brasil é um dos países que mais avançou na América Latina nas questões das pessoas LGBTIs em privação de liberdade”, diz.
Educação para acabar com o preconceito – No IPCG diversas associações, além da Subsecretaria de Políticas Públicas LGBT, ligada ao governo do estado, desenvolvem atividades, palestras e materiais educativos para melhorar a rotina dessa parcela dentro do presídio. Um exemplo é a tentativa de restabelecer o vínculo familiar. A maior parte das travestis não tem relação com a família, um vínculo rompido, muitas vezes, antes de começarem a cumprir a pena.
Mais uma vez, conforme relatou, Loira é exceção. Ela conta ter sido bem aceita pela família desde o começo, e, além disso, sempre trabalhou como promotora de eventos.
“Tinha [estrutura], tinha sim, a minha família sempre me apoiou, só tinha um irmão que era o mais velho que não aceitava, ele achava que quando eu crescesse eu ia pra avenida me prostituir, ia ser igual várias travestis são. Mas eu sempre trabalhei, tive um emprego, aí entrei no mundo do crime que é o mundo das drogas, aí foi o que me levou pro presídio”, conta ela, que cumpre pena por tráfico e associação para o tráfico.
O trabalho educativo com os outros presos, ainda assim, não avançou e pode ser uma das explicações do preconceito que ainda predomina. Assistente social do IPCG, Liliane Amarília afirma que quando começou a trabalhar no presídio, até o horário do “banho de sol” era diferente para as travestis.
“A gente já fez algumas... entregou algumas coisas, é muitos [número de presos], mas a gente tenta conscientizar aos poucos. Mas palestra com os outros não, a gente trabalha mais mesmo com o público LGBTI. Vamos ter que pensar também nessa possibilidade, de trabalhar com os outros, não só com elas”, disse.
Transferências e laços afetivos – No Brasil, ao menos duas decisões judiciais concederam a mulheres transexuais o direito de serem transferidas para penitenciárias femininas. Esses pedidos, ainda assim, são exceções. A maioria das mulheres travestis e transexuais não querem cumprir pena com outras mulheres e o motivo é bem simples: é com os homens que a grande maioria busca se relacionar.
Loira ri quando conta sobre o namorado que ela conheceu no IPCG. Agora, ele progrediu para o regime semiaberto, cumpre pena no Centro Penal Agroindustrial da Gameleira, e espera pela autorização judicial para visitar a namorada.
“Não [vontade de serem transferidas para um presídio feminino], eu não, quero não”, conta, rindo. “É por isso [ficar mais perto dos homens]”, ri novamente. “Conseguem [ser transferidas], mas elas vão pra lá e depois querem voltar, queriam voltar para o masculino de novo, porque não deu certo no feminino, porque lá não tem como você se relacionar com ninguém”, relata.
Gustavo afirma que os laços afetivos construídos dentro dos presídios são, muitas vezes, os únicos que elas possuem.
“Muitas mulheres trans e travestis são abandonadas pela família e as poucas que tem vínculo quando são presas perdem o vínculo, não recebem visita. Então os vínculos que desenvolvem são com os companheiros, porque são a única figura feminina, desenvolvem laços afetivos com os presos e esses laços são muito caros. Se elas forem transferidas perdem esses laços e também tem a questão dessa ideia de que uma prisão feminina trataria uma mulher trans mais como mulher, mas não tem como garantir. As próprias mulheres que são presas tem faltas graves, nada garante que uma mulher trans vai ter bom tratamento”, explica.
Aqui, novamente, os relacionamentos esbarram na discriminação e até na violência. “No começo”, contou Loira, os presos que se relacionavam com as travestis apanhavam dos outros companheiros.
“Eles têm que aceitar [outros presos], porque é uma opinião da gente, a gente quer. No começo não aceitavam não, no começo quando iam pra cela 4, tinha aquele negócio: ‘você vai pra cela 4, pra cela dos viados, você tem que apanhar’. Agora não, é normal, você arruma uma pessoa, quer ir pra lá, a população toda aceita”, comenta.
O espaço apertado – Gustavo não quis adiantar “a análise” do IPCG, mas afirma que a cela separada e a transparência com que foi recebido já podem ser considerados avanços. Ele também elogiou o fato do Instituto ser considerado unidade de referência e promover transferências de presos.
“O Mato Grosso do Sul me recebeu com bastante transparência, sobretudo para os direitos humanos. Tanto a secretaria de segurança quanto a unidade me atenderam de forma transparente, tive acesso in loco às alas, às celas, dentro da cela. É difícil trazer políticas institucionais para as prisões porque não sabemos tudo que acontece dentro. Tem essa característica de unidade referência, de fomentar a transferência, e não é uma coisa que acontece em todas as regiões do Brasil”, disse.
Loira é otimista sobre a rotina. Seu sonho de liberdade é voltar para o trabalho e viajar pelo estado, como fazia antes. Para espantar a tristeza, quando ela vem, assiste novelas e lê. Enquanto a liberdade não chega, Loira espera pelo fim do preconceito e por mais espaço, literal – com capacidade para 406 presos, 1450 vivem hoje no IPCG - e figurado, dentro do presídio.
“Tem bastante coisa que tem que mudar. Lá nós temos uma cela que está superlotada, não é só nossa cela, é o presídio todo. Tem que melhorar o respeito”, declarou.