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Caps é “última chance” para quem luta contra vício em álcool e drogas

Com equipe multidisplinar e cuidado compartilhado, Caps do Guanandi atendeu 3500 pessoas desde 2023

Por Jéssica Fernandes | 04/08/2024 16:08
Paciente do Caps Guanandi caminha da enfermaria para refeitório. (Foto: Paulo Francis)
Paciente do Caps Guanandi caminha da enfermaria para refeitório. (Foto: Paulo Francis)

O dia começa cedo no Caps (Centro de Atenção Psicossocial) para funcionários e pessoas que estão em tratamento devido ao vício em álcool, drogas e, muitas vezes, ambos. No Bairro Guanandi, por volta das 8h10, a recepção está movimentada com pacientes aguardando serem chamados no consultório. Uma porta adiante está a enfermaria e os quartos onde pelo menos dois pacientes estão dormindo.

Desde outubro de 2023, o Caps está de portas abertas 24h por dia no bairro. Por essas mesmas portas passaram mais 3500 pessoas desde então. Esses passos são dados por vontade própria, ou seja, faz o tratamento quem quer. As mesmas portas que estão abertas para quem deseja entrar também permanecem assim caso a pessoa queira sair. Por esse motivo não é incomum a equipe receber mais de uma vez o mesmo paciente que mais uma vez recomeça o processo de sobriedade.

Responsável pelo Caps (Centro de Atenção Psicossocial) do Bairro Guanandi, Anapaula Jonas trabalha há 23 anos com saúde mental. Ela responde pela equipe que é multidisciplinar e integrada por 10 médicos, quatro psicólogos, dois farmacêuticos, dois enfermeiros e seis técnicos de enfermagem.

Anapaula Jonas é responsável pelo centro de atendimento no bairro. (Foto: Paulo Francis)
Anapaula Jonas é responsável pelo centro de atendimento no bairro. (Foto: Paulo Francis)

Esses são os profissionais que o município dispõe para realizar o atendimento e acompanhamento de homens e mulheres. Devido ao histórico com drogas e álcool, parte deles apresentam algum tipo de psicose. Através do SUS (Sistema Único de Saúde), eles também têm acesso aos medicamentos que são retirados na farmácia do próprio Caps.

Nesta quarta-feira (31), o Caps está com 10 pacientes internados e todos eles são homens. Os homens representam a maioria dos casos que o centro recebe, porém as mulheres também são vítimas do próprio vício. Ao se falar da idade dessas pessoas, a faixa etária é de 16 anos a 40 anos.

Por mais que a luta contra a dependência química ou etílica seja individual, existe uma rede de apoio por trás. O Caps não funciona sozinho, pois diariamente são feitos encaminhamentos por meio das UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) e até mesmo o Consultório na Rua que é um serviço de atenção primária à saúde prestado às pessoas que vivem em condição de rua.

Homens descansam em dois dos 10 leitos oferecidos pelo sistema. (Foto: Paulo Francis)
Homens descansam em dois dos 10 leitos oferecidos pelo sistema. (Foto: Paulo Francis)

Anapaula explica que por mais que os pacientes tenham a liberdade de interromperem o tratamento assim que desejarem, o Caps faz o possível para manter a pessoa por perto. “Nós temos grupos que é pra articular, por exemplo, tentamos ver onde está a pessoa, por onde passou, se está em alguma Upa, nós vamos nos auxiliando para ter um cuidado compartilhado com esse paciente. Tudo é em rede e não é só o processo de internação”, comenta.

A internação, conforme ela, é algo conversado com a pessoa que, às vezes, tem uma família por trás ou já perdeu o vínculo e vive nas ruas. “É dar essa liberdade ao indivíduo ao seu tratamento, ele que escolhe, ele é o ser participativo do projeto terapêutico dele. Não somos nós que determinamos, a gente conversa, maneja”, fala.

Os que não estão internados comparecem ao Caps conforme a agenda. Para passar pela consulta, retirar remédio ou participar de alguma atividade em grupo. No centro, os atendidos têm terapias integrativas para preencher a rotina.

Desenhos e trabalhos artísticos dos pacientes são expostos nas paredes. (Foto: Paulo Francis)
Desenhos e trabalhos artísticos dos pacientes são expostos nas paredes. (Foto: Paulo Francis)
Desenho da equipe multidisciplinar feito por uma das pacientes. (Foto: Paulo Francis)
Desenho da equipe multidisciplinar feito por uma das pacientes. (Foto: Paulo Francis)

O resultado desse trabalho é possível conferir por toda extensão do prédio que tem as paredes preenchidas por desenhos, pinturas e outros trabalhos artísticos. Um dos desenhos feitos por uma paciente representa todos os profissionais do lugar. Cada um deles foi lembrado pela mulher que ainda fez a brincadeira de “Caps BBB 2024 - Escalados para o feriado de Carnaval”.

De acordo com a responsável pelo Caps, as oficinas também têm como finalidade trabalhar as emoções de cada pessoa. Durante as aulas não é incomum pelo menos um paciente demonstrar algum tipo de talento, por exemplo, com o violão.

Apesar da leveza que esse cenário pode transmitir, o Caps atravessa vários momentos com os pacientes. Quem chega no lugar nem sempre quer participar de atividades, conversar ou até mesmo ser visto ali. Anapaula fala que muitos sentem receio sobre a forma que serão vistos na sociedade.

Internados participam de oficina ministrada por psicóloga. (Foto: Paulo Francis)
Internados participam de oficina ministrada por psicóloga. (Foto: Paulo Francis)

“Eles sentem a pressão da sociedade, do preconceito, falam: ‘Tem como não colocar o CID (Classificação Internacional de Doenças)  no meu laudo ou um papel que não aparece o Caps?’. Eles têm esse sentimento de que lá fora vai ser mais difícil se souberem”, afirma.

Última chance - Ricardo*, de 36 anos, está no Caps desde sexta-feira retrasada. Ele chegou ao lugar porque quis e aguardou por duas semanas na UPA a liberação da vaga. Internado, ele conta que buscou tratamento porque tem um emprego bom e que as drogas estavam atrapalhando.

“Hoje eu não posso perder esse emprego, um porque eu gosto e outro porque financeiramente tenho um bom salário. Isso da droga e álcool estava me atrapalhando e eu já estava começando a faltar”, diz.

Internado no Caps, paciente relata que começou a usar drogas aos 24 anos. (Foto: Paulo Francis)
Internado no Caps, paciente relata que começou a usar drogas aos 24 anos. (Foto: Paulo Francis)

Esse ano, no período que tirou férias, Ricardo passou 20 dias “bêbado e usando drogas”. Ao retornar para o serviço, ele relata que pegou parte do salário e gastou tudo com o vício. Nesse período, o homem ficou cinco dias fora de casa.

“Aí no sábado cheguei em casa de manhã e vi o olhar de tristeza e decepção da minha mãe, aquele olhar me machucou mais que qualquer palavra. Eu vi que precisava de ajuda”, relata.

Essa não é a primeira vez que ele percorre o caminho da sobriedade. Em 2018, Ricardo passou por uma casa de recuperação, ficou quatro meses limpo e ao sair do lugar acabou zerando essa conta. “Foi por causa de um cigarro e meia latinha de cerveja que eu recai”, desabafa.

Viciado em cocaína e pasta base, ele começou a usar drogas antes dos 25 anos. Na juventude realizava shows e com vontade de escrever as próprias músicas passou a fumar maconha para ter inspiração. “Eu tinha um ritual. Eu comprava cinco reais de maconha que na época durava dois meses, porque eu não fumava todos os dias, e escrevia minhas músicas”, recorda.

O envolvimento com a maconha veio através do conselho de um amigo. O mesmo ocorreu quando começou a consumir pasta base. “Um colega apresentou a base, falou que era doce, para colocar na maconha e fazer um mescladinho. Começou assim até um certo ponto que eu não queria mais a maconha”, expõe.

A pasta base ficou no lugar da maconha, sempre enrolada como cigarro e nunca “flagrante” como no caso em que é usada na latinha. Ricardo que nunca usou pasta desse jeito por ter vergonha, a vergonha é um dos entraves que ele atravessava para poder usar drogas.

“Eu tenho vergonha do pessoal me ver fazendo aquilo e principalmente no meu bairro onde muita gente me conhece. Eu não consigo sair para comprar droga, pago pra alguém ir, mas não vou. Fico com vergonha”, fala.

Por ser fácil de fumar e doce, ele afirma que ficou dependente, porém hoje, ao relembrar dos 24 anos, não sabe dizer porque caiu nessa. “Chega o momento em que você começa a ver coisa, vê uma sombra e acha que alguém tá te cuidando, acha que tão falando de você. Eu não vejo o porquê entrei nesse mundo. Por vacilo a gente acaba destruindo a própria vida”, expõe.

Há duas semanas, ele tem recebido visitas diárias da mãe que já garantiu que independente da distância fará o mesmo quando ele for para uma comunidade terapêutica. “Ela é a única que não desistiu de mim ainda, então essa é a minha última oportunidade”, finaliza.

Serviço - Na Capital, as pessoas podem chegar aos Caps através dos seguintes serviços Usf (Unidade de Saúde da Família), SEAS (Serviço Especializado em Abordagem Social), Centro POP (Centro de Referencia Especializado a População em Situação de Rua); UAIFA (Unidade de Acolhimento Institucional para Adultos e Famílias) EAP (Equipe de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis às Pessoas com Transtorno Mental em Conflito com a Lei, CRAS (Centro de Referência de Assistência Social).

O contato do Caps Guanandi é 2020-2267

*Ricardo é um nome fictício para preservar a identidade do personagem e de terceiros.

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