Índios escolhem Capital para fazer sucesso após vencer o preconceito
Nascidos em aldeias indígenas do interior de Mato Grosso do Sul, o biólogo e professor Rosaldo Albuquerque de Souza, 40 anos, a enfermeira Rejane Miguel da Silva, 34 anos, e o advogado Luiz Henrique Eloy Amado, 25 anos, têm algo em comum: escolheram Campo Grande como cidade para construírem suas carreiras.
De famílias simples, eles precisaram driblar muitas dificuldades como o preconceito e a falta de dinheiro para chegar aonde chegaram. Profissionais de sucesso nos dias de hoje, eles relatam como vieram à Capital sul-mato-grossense e como suas ações refletem nos demais índios do Estado.
Casal de vencedores – Sentados em um confortável sofá na casa própria localizada na região do Los Angeles, Rosaldo e Rejane relatam os planos que fazem a respeito do futuro do filho Richard Kinikinau, de apenas um ano e sete meses. Ambos ex-alunos das Uems (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), eles se dizem realizados com tudo que conquistaram.
Rejane é da etnia terena e nasceu na aldeia Lagoinha, no município de Aquidauana. Ela conta que a família enfrentava grandes dificuldades financeiras, como outras da região, mas que mesmo assim conseguiu levar a vida dentro das possibilidades. O maior problema daquela época, afirma, era a precariedade no ensino de escolas para indígenas.
“Era difícil levar os estudos adiante, pois na aldeia tinha só até a oitava série. Para fazer o ensino médio era preciso se deslocar até a cidade, e por isso muitos desistiam. O destino das meninas era sempre o mesmo, desistir, casar e engravidar ainda jovem”, explicou. Rejane via na educação a chance de conquistar uma vida melhor para si e familiares.
Após concluir o ensino médio, ficou por um tempo sem estudar, até que prestou vestibular para o curso de Matemática, no ano 2000. Ela foi aprovada, mas devido ao pouco acesso à informação, acabou perdendo a oportunidade.
“Na aldeia tinha só um orelhão e nem sei se telefonaram, mas lembro de que, quando fui até a universidade para ver o resultado, descobri que havia sido aprovada. No entanto, já tinha perdido a chamada e as vagas estavam preenchidas”, disse Rejane.
Apesar da frustração ela perseverou e conseguiu ser aprovada para Letras na Uems, porém, não se adaptou ao curso, já que tinha o sonho de se tornar enfermeira. Em 2004, conseguiu ingressar no curso de Enfermagem.
“Foi uma vitória, mas estudar não foi fácil. Não tinha como trabalhar, pois o curso era período integral e minha família não tinha condições de me ajudar muito. Sobrevivia com os poucos trocados que me davam e também com uma bolsa que na época, era algo no valor de R$ 350”, contou ela que se formou em 2010, ano que se casou com Rosaldo.
Hoje ela é enfermeira coordenadora da Casai (Casa de Apoio à Saúde Indígena) de Campo Grande, cargo que ocupa desde 2012. Depois de tudo o que passou, se sente realizada com o que faz.
“O sentimento de recompensa é grande, pois posso oferecer aos irmãos indígenas tudo aquilo que aprendi. Meu trabalho reflete no desenvolvimento da comunidade. Sinto-me feliz, pois hoje sou vista como exemplo para familiares e amigos da aldeia onde nasci”, conta a integrante da 1ª turma de indígenas da Uems.
Biólogo – Nascido na aldeia São João, de Porto Murtinho, o kinikinau Rosaldo fala sobre a infância difícil, período em que teve apenas um brinquedo, um carrinho de plástico, e o uniforme que usava para ir a escola era feito a mão, pela mãe, uma vez por ano. “A gente tinha pouca roupa. O uniforme era usado por muito tempo. Em algumas fotos antigas eu apareço vestindo uma calça pequena, já na canela, e um kichute que era meu único calçado”, diz.
Ao longo dos anos, serviu o Exército e chegou a ficar 13 anos longe da escola. Durante um trabalho de extração de madeira, na aldeia em Porto Murtinho, recebeu um convite especial.
“Eu trabalhava no mato, cortando árvore. Dormia na mata, fazia tudo lá, não tinha nem um colchão direito pra dormir. Um dia um professor soube da minha história e foi lá me tirar. Ele disse que se eu voltasse a estudar, o magistério no caso, daria uma turma de crianças para eu dar aula. Como a situação era precária, e mal tinha o que comer, acabei aceitando”, conta.
Após concluir o magistério ele ingressou no curso de biologia na Uems, em 2005. Hoje é Mestre em Desenvolvimento Sustentável - Modalidade de Sustentabilidade Junto a Povos e Terras Indígenas – pela UNB (Universidade Nacional de Brasília), e professor da rede pública.
“No Exército me ensinaram a ser forte e a buscar o melhor pra mim e para meus irmãos. Mesmo quando eu não tinha nada e a expectativas sobre qualquer coisa eram baixas, eu tentava algo, até que a oportunidade apareceu, e abracei com todas as forças”, relata.
Além de lecionar, ele também defende a causa indígena e contribui com o povo kinikinau na luta pela distribuição de terras em Porto Murtinho. Durante a conversa, ele a esposa fizeram questão de destacar que em tudo o que conquistaram tiveram a influência direta das políticas de cotas para os povos indígenas, mas ressaltaram que nunca tiveram facilidades por isso.
“As cotas são boas e nos abriram as portas, mas a gente teve que estudar e trabalhar como qualquer outra pessoa. No mercado a gente concorre com todo mundo, não há vantagens ou desvantagens, somos todos iguais”, disse Rosaldo incentivado pela mulher.
Advogado – Advogado e assessor jurídico do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e de outras instituições, o terena Luiz Henrique Eloy Amado também é tido como exemplo na batalha pela causa indígena. Quando ele nasceu na aldeia Ipegue, em Aquidauana, há 25 anos, sua mãe sabia que ele e os irmão precisariam de mais chances, e por isso, largou tudo e veio morar na Capital, para que todos pudessem estudar. “Eu fiz as primeiras séries na escola da aldeia. A maioria (dos alunos) parava, mas minha mãe fez o possível para que continuássemos”, conta.
A mãe dele veio para trabalhar como doméstica na casa de uma família. Assim, Amado estudava na escola da rede pública. “Era complicado, pois como estávamos morando de favor, tínhamos que nos resguardar, e sempre esperar os donos da casa. Por exemplo, eles comiam, e só depois poderíamos comer, pois éramos os filhos da empregada”, conta. Apesar das condições, ele terminou o ensino médio e ingressou como bolsita em uma universidade privada da capital, onde se formou.
Preconceito – Os três relatam que a sociedade ainda possui certa desconfiança com relação a capacidade de ascensão dos indígenas. Contam que durante a universidade foram alvos de preconceito e que em muitas vezes eram marginalizados. Embora as instituições fossem contra este tipo de comportamento, alguns colegas de turma não.
“Nos primeiros anos só fazíamos trabalhos entre nós indígenas, porque os outros alunos não nos levavam a sério. Eramos excluídos e sempre tínhamos que provar nossa capacidade. Nos últimos anos, as coisas mudaram um pouco, pois sabiam quem nós éramos”, lembrou Rejane.
Rosaldo relata história parecida com a da esposa, e lembra que, entre algumas dificuldades, esbarrava na falta de acesso à informática. “Não tínhamos computador e isso limitava um pouco as nossas ações, mas tudo foi superado com força de vontade. Sempre nos uníamos, ou quando não tinha jeito, nos virávamos e fazíamos as atividades sozinhos”, reforçou.
“Já chegaram a dizer que eu não tinha o direito de frenquentar a mesma universidade que outras pessoas de classes mais abastadas. Apesar de a gente achar que não existe, o preconceito está presente em diversos momentos, e só quem está em nossa pele consegue sentir”, disse Amado.