Na maior escola da cidade, o aluno singular aprendeu a ler aos 59 anos
Localizada no Parque do Lageado, escola Padre Tomaz Ghiraderlli tem entre 2.500 alunos muitas histórias para contar

Atendimento das 7h às 22h, público diário de 2.500 pessoas, 230 funcionários, fornecimento de 50 quilos de arroz por dia e 1.200 ovos numa única manhã. Os números de impressionar são da maior escola municipal de Campo Grande: Padre Tomaz Ghirardelli. Desta profusão de estatística, se projeta uma placa singular. Nas mãos da coordenadora Mauricéia Azevedo Paes, a pequena homenagem retrata o que não se pode quantificar: o carinho de quem aprendeu a ler e escrever aos 59 anos.
O presente foi dado ao aluno por colegas do trabalho, no reconhecimento pelo esforço de quem madruga, cruza a cidade para ir ao emprego e ainda resolveu estudar. Mas Raimundo Bernaldo dos Santos decidiu que a placa deveria ficar com a mestra.
“Ele está aqui desde o ano passado. Veio porque queria aprender a ler e a escrever. O que não conseguiu quando era mais novo, devido ter começado trabalhar muito cedo. Ele está no inicial dois [que corresponde ao quarto e quinto ano]. Esse ano, também trouxe a esposa”, conta a coordenadora.
"Ela merece", afima Raimundo sobre a homenagem. O estudante mora na região do bairro Dom Antônio Barbosa, madruga para trabalhar nas Moreninhas e só volta para a casa depois de bater ponto na escola. Todo o deslocamento é feito de ônibus. Nascido em Alagoas, ele estudou por pouco tempo na adolescência. Agora, além das contas, para a quais tinha aptidão natural, domina as letras.
Raimundo é aluno do EJA (Educação de Jovens e Adultos), que funciona no período noturno, das 18h às 22h. Nesta modalidade, são 230 alunos, com idade a partir de 15 anos. A maioria passa o dia no trabalho duro, como servente de pedreiro, por isso, a escola se preocupa em oferecer o lanche no começo da aula. A lógica é que só aprende quem está bem alimentado.
“Os professores tentam fazer atividades diferenciadas, não é só copiar. Como eles trabalham muito, a gente faz algo diferente, desde o lanche o tratamento é VIP”, diz Mauricéia, que veio de Rondônia para estudar em Campo Grande e decidiu exercer aqui a sua vocação de ensinar. Para quem quer desistir, ela lembra que o Ensino Médio é a exigência mínima para a maior parte das vagas de emprego.
“Sei a história da maioria. E eles conhecem as regras. Quando erram, até somem. Mas depois aparecem pedindo desculpas”, conta Mauricéia.
Sempre lembrado - Localizada no Parque do Lageado, a escola tem 21 anos e também recebe alunos dos bairros Dom Antônio Barbosa e Parque do Sol. A região tem as suas carências financeiras e de infraestrutura, realidade abarcada pelo termo vulnerabilidade social. No imaginário da cidade, o Dom Antônio é o bairro sempre lembrado pelo lixão, que há alguns anos foi substituído pelo aterro sanitário.
No passado, a disputa das gangues do Dom Antônio Barbosa e Parque do Sol, bairros separados pela rua Evelina Selingard, refletiu na escola. Há três anos, o colégio se abre para festas, como eventos juninos, sem registro de violência.
Já as dificuldades financeiras repercutem principalmente na alimentação. Às segundas e sextas-feiras é preciso pôr mais água no feijão. No fim de semana, muitos alunos terão o cardápio restrito ao sopão distribuídos por voluntários de igreja e centro espírita. Na escola, o lanche lembra o quebra torto (refeição servida logo cedo para quem vai trabalhar) e também é servido logo que a aula começa.
“O lanche é servido logo que eles chegam. O bairro tem vulnerabilidade social e a maioria das crianças espera pelo lanche, que é uma refeição com arroz, carne, feijão, frutas. A situação de alguns é muito difícil ainda”, afirma a diretora Clarice Cassol Miranda, que há três anos está no comando da maior escola da Reme (Rede Municipal de Ensino).
Com as festas, conseguiu instalar câmeras e acompanha a rotina dos estudantes por um telão na diretoria. A arrecadação com eventos também bancou os R$ 8 mil para cobertura metálica lateral de uma das quadras.
O colégio tem 36 salas de aulas, sala de informática, duas quadras, laboratório de Matemática, laboratório de Ciências, sala de multimeios, ateliê, banda, balé, futsal e quadra de beach tennis. A equipe de funcionários conta com 180 professores e 50 administrativos.

“Devido à grande quantidade de alunos, a gente faz o possível e o impossível para eles serem bem atendidos. A escola procura levar os alunos ao cinema e passeios. Muitos não saem do bairro”, afirma Clarice.
Merenda em ritmo industrial – Conhecida como “prô” (diminutivo de professora) entre os pequenos e de tia entre os mais velhos, a merendeira Lidiane Camillo Guimarães Ferreira, 38 anos, trabalha na escola há cinco anos. A rotina para alimentar tanta gente começa cedo.
Às 6h é preciso iniciar os preparos para servir a merenda. Dependendo do cardápio do dia, podem ser preparados 20 quilos de arroz numa única manhã, lavadas milhares de folhas de alface e fatiados quilos de cenoura.
A experiência ensinou que a melhor forma de preparar ovos para um batalhão é fazer o alimento mexido. O ensinamento veio depois da corrida contra o tempo para descascar 1.200 ovos cozidos. Pelas mãos das merendeiras, alunos aprendem a comer saladas e a conhecer frutas, nem sempre presentes na refeição oferecida em casa.
“Nunca na minha vida achei que ia alimentar tanta gente. Quando fiz o concurso, achava que as escolas eram pequenas. Pensei meu Deus. Mas vim para cá e aqui estou”, diz Lidiane, que encara o preparo de dez quilos de arroz numa única panela.
Saudade antecipada – Na maior escola da rede municipal de Campo Grande, não espere encontrar corredores vazios. O ir e vir de professores, alunos e administrativos é constante. O nome Tomaz Ghirardelli homenageia o padre nascido na Itália, mas que passou a maior parte da vida em Campo Grande.
Na manhã da terça-feira (dia 20), a fila de meninos e meninas, guiada pelo professor, ruma para a quadra. De repente, uma parada na coordenação vira choro e protesto infantis. Dois ficam pelo caminho. O motivo, dito com toda a sinceridade dos seis anos, foi ter dado susto e tentado bater em meninas. O choro logo vira história animada sobre a brincadeira preferida: soltar pipas.
No maior colégio, os alunos podem cursar da pré-escola ao nono ano. O caminho foi percorrido por Anna Kelly Vitório Pereira Braga, 15 anos. Em 2019, ela está de despedida. O futuro inclui os planos de concluir o Ensino Médio e ser policial militar. Vice-líder de sala, Anna aprendeu a intermediar os interesses dos colegas e da escola
“Eu preferia ficar aqui até o terceiro ano. Se tivesse, eu ficava. Vou sentir muitas saudades”.
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