"Tomada por bocas de fumo", diz capitão sobre aldeia onde adolescente foi morta
Capitão da Aldeia Jaguapiru relata disputa por território onde tráfico de drogas cresce e pede policiamento
Ao ser questionado sobre a situação das comunidades indígenas em Dourados, distante 251 quilômetros de Campo Grande, um dos líderes responde: "Está entre a facção da droga que não para e a cachaça". Ramão Fernandes, capitão da Aldeia Jaguapiru, atendeu nossa reportagem rapidamente por telefone, nesta segunda-feira (11), e lamentou mais um crime envolvendo jovens indígenas. Violência que costuma estar associada ao uso de álcool e outras drogas.
No caso mais recente, não foi diferente. Kleiton Benites Gomes, 19, foi preso neste fim de semana pelo assassinato da namorada, Karine Ferreira Isnarde, de 16 anos. O corpo tinha sinais de estupro e marcas de asfixia. Segundo moradores da aldeia, na noite anterior, a adolescente havia se reunido com amigos e com o namorado para consumir bebida alcoólica.
"Ela tinha muitos sonhos. Estamos muito tristes", disse Ramão sobre a vítima. O capitão diz que as aldeias estão "infestadas de bocas de fumo" e ainda existe uma disputa por território entre facções. O líder indígena relata um clima fora de controle em que adolescentes começam a se drogar aos 12 anos de idade com maconha, crack e uso de álcool. "Somos ameaçados. Já tentaram me matar. Atiraram em mim", conta.
Ainda segundo Ramão, 16 indígenas fazem o policiamento na aldeia apenas com "pedaços de pau". A comunidade pede mais segurança. "A Polícia Militar vem quando a gente chama, mas queremos uma base fixa deles aqui dentro. Também pedimos coletes a um representante do Governo Federal que esteve aqui uns três meses atrás", conta.
Em junho de 2022, uma adolescente indígena, de 14 anos de idade, confessou ter esfaqueado o próprio tio durante roda de cachaça na Aldeia Jaguapiru. A jovem disse que reagiu porque o tio estava agredindo e enforcando a própria esposa.
Prevenção - A professora da UFGD, Gicelma Chacarosqui coordena um projeto para combater o alcoolismo nas aldeias Jaguapiru e Bororó com atendimento médico, palestras, além de incentivar geração de renda com o cultivo de hortas.
“Nós temos quase 20 mil indígenas em uma localidade de 370 mil hectares, que é abraçada pela urbanidade de Dourados e pela ruralidade de Itaporã, porque as fazendas chegam até o limite da reserva. É uma localidade com uma característica de uma grande favela rural", destaca a professora.
Gicelma diz que faltam necessidades básicas, como água e comida, tornando o cenário desesperador. "Como evitar atrocidades? Nada se consegue fazer sem prevenir a fome", diz a professora.
Reportagem do Campo Grande News do dia 15 de novembro mostra que o problema da falta de água foi levado ao Governo Federal. Ricardo Weibe Tapeba, secretário de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, afirmou que está estabelecendo parceria para perfuração de poços e a curto prazo a contratação de caminhões-pipa.
Dentro destas condições precárias, a professora Gicelma conclui: "Um jovem que vive lá e passa por uma crise identitária, que não tem perspectiva de presente e de futuro, é muito mais fácil se agarrar em um corotinho ou na cachaça para esquecer a existência".
Basta uma rápida busca pela internet para encontrar trabalhos de universidades apontando para o aumento do consumo de álcool e outras drogas dentro das comunidades indígenas.
Levantamentos - Publicação do curso de Ciência Sociais da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) com dados das aldeias Bororó e Jaguapiru conclui: "Beber deixou de ser somente algo da tradição singular indígena e em alguns casos passou a ser patológico. Violências, suicídios, desnutrição infantil, abuso do uso de álcool e outras drogas são algumas das sequelas que ficaram na rotina destes povos".
Repercussão - Outra rápida busca na internet mostra que o assunto já foi amplamente estampado por jornais locais e de fora do Estado. Em 21 agosto de 2021, a Folha de São Paulo trouxe a seguinte matéria: "Com 1 em cada 5 habitantes sendo usuário de bebidas alcoólicas ou drogas como maconha e cocaína, a população indígena de Dourados registra uma média de homicídios 400% superior à de não indígenas no estado, segundo dados apontados pelo Ministério Público Federal".
A reportagem detalhou os números: "Desde 2012 o Brasil teve taxa média de 29,2 homicídios por 100 mil habitantes. Em Mato Grosso do Sul, a taxa foi de 26,1. Entre os indígenas do estado, o número sobe para 55,9. Já os indígenas das reservas de Dourados enfrentam uma taxa de 101,18, número quase 400% superior a dos não indígenas de Mato Grosso do Sul".
A matéria foi feita dias após a morte da menina de 11 anos, Raíssa da Silva Cabreira, na Aldeia Jaguapiru. Segundo a polícia, ela foi jogada de uma altura de quase 20 metros após ser estuprada coletivamente por três adolescentes e dois adultos, incluindo o próprio tio, Elinho Arévalo. Segundo a polícia, eles confessaram que participaram da ação depois de consumirem bebidas alcoólicas por todo o dia.
"Todos os crimes violentos que atendemos nas aldeias vêm do uso do álcool e de drogas. O próprio jovem preso pelo crime da Raíssa: ficamos por horas esperando ele se recuperar dos efeitos da pinga para colher seu depoimento", disse o delegado Erasmo Cubas à época para a imprensa.
Respostas - A Prefeitura de Dourados informou que presta vários serviços dentro da Reserva Indígena, incluindo na área de serviços urbanos, com patrolamento das vias, instalação e manutenção de iluminação pública. "Na área da educação, são duas escolas municipais com professores de língua nativa. Também existe um trabalho de assistência técnica e de serviços da agricultura familiar. Dentro da Reserva Indígena há um Cras (Centro de Referência da Assistência Social) para os atendimentos e direcionamentos aos direitos sociais de pessoas em situação de vulnerabilidade".
O Governo de Mato Grosso do Sul lembra que, apesar de desenvolver algumas ações dentro das comunidades, "territórios indígenas são áreas de competência da União".
Em nota, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública diz que desde 2017 existe o Conselho Comunitário de Segurança na Aldeia Jaguapiru, onde os conselheiros, todos indígenas, contam com uma viatura. "Além disso, há a presença do policiamento preventivo feito pela Polícia Militar. Já o policiamento repressivo (investigativo) é rotineiramente feito pela Polícia Civil", complementa.
Ainda de acordo com a Sejusp, em 2023 no foram realizadas 935 ações preventivas pela Polícia Militar no interior das aldeias de Dourados, com a permanência diária de uma base comunitária móvel. "Este ano foram 4 homicídios no interior das aldeias e 28 na cidade e, em 2022 foram 40 homicídios na cidade e 5 nas aldeias. Em 2021 foram 11 homicídios nas aldeias e 32 na cidade. O que demonstra redução de mortes violentas, por conta do policiamento", finaliza a nota.
O Campo Grande News também encaminhou mensagem solicitando um posicionamento sobre os problemas apontados na reportagem para o representante da Funai (Fundação Nacional do Índio) na região sul do Estado e para Eloy Terena, secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas. Até a publicação da matéria, não houve resposta. O espaço segue aberto.
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